Os senhores do Norte

Por Viviane Fontes

Devo confessar que a leitura do terceiro livro da série de Bernard Cornwell, Os senhores do Norte, demorou a me pegar. Até a página 88 tudo foi muito arrastado e chato. Mas, depois, começou a ter uma pegada mais parecida com a dos livros anteriores. 

Após outra grande batalha, que terminou com a vitória do exército de Wessex e a retomada do reino, o rei Alfredo, como prêmio, dá a Uhtred um pequeno terreno em um lugar inóspito que nada, ou pouco, produzia. Mais uma vez, o jovem saxão da Nortúmbria recebeu como recompensa pela sua dedicação o desprezo do rei, enquanto outros que contribuíram menos durante o conflito foram agraciados com boas terras e prata. 

E, claro, isso fez seu ódio aumentar mais.

Porém, diante da indiferença e insatisfação de estar em um lugar que não lhe oferecia nada, contrariando os desejos de Alfredo, ele decide ir em direção à sua terra, no norte, região governada por seus maiores inimigos: Kjartan, que servia a Ragnar, o Velho, e o filho Sven, o Caolho. Ambos são seus desafetos desde garoto quando, ao defender a irmã Kyria dos ataques de Sven, causou a expulsão de ambos do grupo dinamarquês além do maior inimigo de Uhtred, seu tio, que tomou posse do que era seu por direito. 

Outros inimigos históricos dos saxões são introduzidos na narrativa de Os senhores do norte: os escoceses, bem como outros grupos vikings que viviam na Irlanda, mas eram inimigos dos irlandeses, saxões, escoceses e até mesmo dos dinamarqueses. Com isso, o norte se torna um verdadeiro barril de pólvora. 

A primeira parada foi em Eoferwic, onde ficou por pouco tempo, devido ao clima hostil dos saxões contra os dinamarqueses. Com a ida de Ivarr para o norte, a fim de enfrentar os escoceses, um contra-ataque saxão provocou a morte de muitos dinamarqueses estabelecidos na cidade. 

É nesse clima que Uhtred conhece um comerciante dinamarquês que paga por seu serviço de escolta para sair da cidade com a família. Feito o acordo, partem em direção a Dunholm, cidade controlada por Kjartan, o Cruel. 

E não demora a acontecer o encontro com seu desafeto, Sven. O grupo que lidera tenta atravessar a cidade sem chamar atenção, mas, por um momento de desatenção, são encontrados e seguidos por homens de Kjartan. Eles não têm alternativas a não ser ir à direção de um povoado onde escravos eram negociados.

Com a camuflagem de um tecido no rosto sob o elmo, Uhtred confronta seu inimigo sem ser reconhecido. Ali, onde vendia escravos, Sven, mais uma vez, é humilhado por ele. O negociante que estava ao seu lado foi morto e o futuro rei da cidade de Cair Ligualid, mais a oeste da Nortúmbria, que era mantido como escravo, foi libertado junto a alguns padres e monges. Todos seguem em direção à cidade onde Guthred torna-se rei e Uhtred conhece sua nova companheira. 

A religião em Crônicas Saxônicas

É nesse ponto de Os senhores do Norte que uma reflexão mais profunda sobre o cristianismo e os líderes religiosos aparece, mantendo a tradição desde o início da história. 

Ao libertar da escravidão o futuro rei Guthred e partir em direção a Cair Ligulid, Uhtred vivencia de maneira mais próxima os costumes cristãos. Lá, constata a influência de bispos e abades sobre reis e o povo. E, mesmo sendo um pagão, entende que é melhor fingir uma fé que não tem a lutar com a fúria de ideias dominantes. 

Durante a coroação do novo rei, um episódio leva a outras considerações sobre os costumes cristãos. Neste caso, a adoração a um corpo que seria de um santo e objetos que teriam pertencido a ele. Sob o pretexto de construir um templo para São Guthbert, o abade Eadred o carregava desde que seu mosteiro fora atacado pelos invasores. 

Além do corpo do santo, o grupo de monges e sacerdotes carregava a riqueza que haviam salvado. 

Aproveitando da fé das pessoas, o abade usava tais relíquias para conquistar o que desejava. Uhtred observa essa movimentação do sacerdote e seus subordinados, dos quais não confia. 

Ele faz uma análise comparativa entre os deuses do povo nórdico, chamados de pagãos pelo povo saxão, e o deus cristão. No seu entendimento, é mais fácil seguir deuses que “vivem” em suas terras e, portanto, conhecem seus costumes, que servir a um deus de uma terra distante do qual não têm sequer referências. 

Uhtred entende que Thor e Odin têm suas próprias guerras para lutar e a própria vida para cuidar, ignorando quase que por todo o tempo os mortais. Por outro lado, o deus cristão, para ele, está preocupado em criar regras, proibições e mandamentos. E, para garantir que as normas sejam cumpridas, forma-se uma ordem de sacerdotes que vigiam e punem.

E ainda tem mais em Os senhores do Norte

É em Os senhores do Norte, também, que o protagonista/narrador nos dá uma ideia do quanto viveu. São muitos anos, até para quem vive nos dias atuais, e ainda mais se imaginarmos como era a vida nos séculos IX e X, principalmente para um guerreiro que flerta constantemente com a morte. 

Na segunda parte do livro o protagonista passa pela maior transformação da sua vida desde que o pai foi assassinado e fora viver com os dinamarqueses. Por um descuido, quando confiou na palavra de um homem que admirava, sentiu o gosto amargo da traição e passou por situações que nem Alfredo, a quem tanto odiava, o fez passar até aquele momento.

Sem poder mudar seu destino àquela altura, viveu situações de muito sofrimento e risco, perdeu a esperança de mudar a situação em que se encontrava, quando temeu e desejou a morte. Nesse período, dentro de um navio mercante, viajou por mares desconhecidos e conheceu terras distantes.  

Quando tudo indica que os dias de Uhtred terminariam sem alcançar seu objetivo de reconquistar suas terras e reencontrar seus amigos, a ajuda surge de onde menos se espera. 

Junto com o socorro veio também o retorno para Wessex, onde imaginava que não iria voltar a pôr os pés. Foi também lá que reencontrou uma das suas melhores amigas e conselheira, a guardiã do seu maior tesouro. Após um breve descanso e um reencontro com o rei, Uhtred é mandado de volta ao norte para ajudar Guthred a estabelecer a ordem na região.

Ao retornar à Nortúmbria surge a oportunidade de vingar a morte de Ragnar, o Velho. Mas, para isso, era necessário ultrapassar as muralhas, quase intransponíveis, de Dunholm. Contudo, aos 23, ainda muito jovem, Uhtred soube aliar toda sua garra, ousadia e força com as experiências adquiridas nas batalhas que enfrentou. Afinal, fora ele quem matou o grande guerreiro Ubba e, posteriormente, liderou o exército de Alfredo para derrotar Guthrum. 

Cornwell construiu com perfeição a vingança que Kjartan e o filho Sven mereciam. Uhtred, nesse momento, não deveria ter o protagonismo da ação, e não teve. Ele foi, sim, importante para a derrocada de Kjartan, mas soube se colocar no seu lugar e deixar a rixa ser resolvida pelos maiores afetados. 

Mas, ao final de Os senhores do Norte, Uhtred tem mais um momento de glória, reafirmando-se como um grande guerreiro, respeitado e temido por saxões e dinamarqueses.

Ps.: Além da narrativa que o autor usa para encantar e prender nossa atenção, ele deixa notas históricas ao fim de cada livro, o que torna tudo mais interessante. Nesse, confirma a trégua, acordada entre Afonso e Guthrum, que possibilitou a Wessex se fortalecer enquanto novos ataques dinamarqueses não aconteciam. Ele também ratifica a existência de um rei chamado Guthred, citado em algumas fontes como Guthfrid. Já três personagens relevantes são fictícios: Kjartan, Ragnar, o Jovem, e Gisela.

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