Por uma nova geração Matilda

Matilda é um filme de 1996 baseado no livro de mesmo nome, lançado na Inglaterra, em 1988, e conta a história de uma menina especial que nasce em uma família de lunáticos. Tudo o que quer fazer é ler e ir para a escola, mas seus planos são frustrados por um pai vigarista, uma mãe desocupada e um irmão bully.

Além do interesse pelo conhecimento, Matilda tem poderes especiais: quando fica brava, desenvolve telecinesia. Contudo, esse é apenas um detalhe da narrativa, que traz uma mensagem importante: crianças são essencialmente curiosas e adoram aprender.

O livro certo, no momento certo, pode fazer a diferença.

Olhe para o lado, para as crianças que você conhece. Perceba que a única preocupação da vida delas, agora, é conhecer o mundo. Elas repetem palavras que acabaram de ouvir, estão ávidas por fazer novos amigos e, não raro, querem ficar acordadas até tarde e participar das conversas de adulto.

Então por que, e em que momento, nos tornamos o obstáculo para essas aventuras?

A negação adulta da leitura

Penso sobre isso desde o FIQ (Festival Internacional de Quadrinhos) de 2018, em BH. Nele, tive a oportunidade de acompanhar meu marido, o quadrinista Dan Arrows, expondo sua HQ, Samurai Boy, voltada essencialmente ao público infanto-juvenil.

Os desenhos de Dan chamavam a atenção das crianças, mas os adultos eram rápidos em matar o entusiasmo.

Vi muitas crianças folhearem a história, fazerem perguntas e mostrarem a intenção de levar a revista para a casa, mas os acompanhantes adultos repetiam o que provavelmente lhes foi ensinado na infância:

“estamos só dando uma olhadinha”.

Isso diz muito sobre que tipo de educação queremos dar às crianças, principalmente quando esses mesmos adultos, que não querem pagar quinze reais por um material infantil, fazem compras robustas para si próprios – e nem sempre em livros e revistas.

Os pais de Matilda, Harry e Zinnia Warmwood, têm prazer em educar os filhos pelas leis da televisão. Inclusive demonstram, por várias vezes, a preocupação em adquirir um modelo mais moderno, adequado às suas necessidades.

Em uma das cenas do filme, Harry é enfático ao dizer a Matilda, que lia com concentração, enquanto pais e irmão assistiam a uma pessoa seminua ficar besuntada de dinheiro na TV, que famílias unidas jantam assistindo televisão, e que a leitura não fazia parte desse ritual.

Ele chega a inquirir a filha:

Você faz parte dessa família, Matilda? Então, vá ver televisão e largue esse livro”.

Vemos várias páginas de Moby Dick rasgadas e uma criança frustrada que, descobrindo novos poderes, explode a televisão da sala com a força do pensamento.

Mais de 20 anos se passaram desde o lançamento do filme, mas o sentimento de que as coisas se repetem é real: a televisão, transformada também em computador, tablet e tela do celular, é uma das principais “ferramentas de educação” de jovens e adultos.

Absolutamente nada contra a curiosidade pela tecnologia, mas fica a pergunta: será que não estamos, em silêncio, perguntando às crianças que querem desbravar o mundo, brincar e ler se elas realmente fazem parte dessa família?

A impressão que eu tenho é a de que, cada vez mais, o tablet, celular e computador não são vistos como ferramentas para tornar as crianças mais curiosas e ativas, como deveria ser, e sim para dar tranquilidade aos pais que não querem acompanhar os filhos nessas empreitadas.

Livros x Tecnologia

Na era da alta tecnologia vemos lares positivamente equipados com televisores de última geração, notebooks e smartphones que entregam a pais e filhos conteúdo rápido e interessante a eles, embora nem sempre o material tenha qualidade ou relevância. Sim, YouTube, sua joia rara, estamos falando de você.

Por outro lado, quantas estantes de livros vemos nas casas?

A falta desse móvel, e de seu recheio, me encuca profundamente.

As pessoas dizem que a programação da TV/internet é perigosa, não traz nada de bom e, ainda, destrói valores e o caráter… não é mais ou menos isso que dizemos às crianças que querem ficar acordadas até tarde? Mas por que, então, ninguém põe o livro, uma revistinha, na mão das pequenas pessoas?

Será que livros em mãos de crianças metem mais medo nos adultos que o conteúdo rápido das programações televisivas?

Imagine – apenas por um segundo – a quantidade de questionamentos que um livro proporciona. A imensidão de respostas que nós, adultos, não temos. E a facilidade de entreter crianças com conteúdo raso nos canais que, com o alcance que tem, e a diferença que poderiam fazer, se limitam a sugerir que as pessoas tentem não rir de uma série de imagens razoavelmente engraçadas.

Faça as contas.

Danny DeVito e Rhea Pearlman como os Wormwoods: eles fizeram as contas. A resposta era a TV.

Percebo a disseminação de informação da seguinte forma: vídeos (de internet ou TV) são consumo rápido de informações. Em poucos minutos você vê alguém falando sobre algo que te interessa, e pronto. Esse site é prova disso.

Nem sempre, no entanto, esse conteúdo te leva a refletir. No máximo, para alguns, ele será replicado à exaustão, mesmo que não seja verdade ou que não melhore a vida de ninguém, em nenhum aspecto. Temos uma internet inteira nas mãos e preferimos fazer dela uma piscina com água até os joelhos, quando a proposta inicial era mergulharmos no oceano.

Em Matilda, testemunhamos o completo emburrecimento da família que se entrega à televisão, a ponto de não compreender que investigadores policiais estavam sempre na cola no pai vigarista. Para os Warmwood, eles eram vendedores de prancha de surf. A cidade em que moravam não tinha mar.

A única capaz de ler a situação de forma precisa era Matilda, e não porque ela tinha poderes especiais, mas porque podia observar o cenário com clareza e tirar, dele, conclusões lógicas.

Matilda é uma história divertida sobre uma menina que queria estudar, mas pode ser consumida, também, como uma ode ao que os livros fazem com a gente: eles nos obrigam a pensar. Dá trabalho, nem sempre é gostoso, mas a obrigação implícita da leitura é promover reações lógicas, ainda – e, talvez, principalmente – que você não concorde com o que está sendo lido.

Não seja os pais da Matilda!

Quando nos negamos, em uma feira, shopping, livraria, barraquinha de rua, ou até mesmo na internet, a comprar livros ou revistinhas para uma criança, quando temos o recurso financeiro para isso, estamos tirando dela a arma mais importante da vida: o interesse pelo conhecimento.

Mais: a frase “não vou/quero comprar esse livro para você” tem o poder de matar a curiosidade latente, que pode se esvair completamente dentro de poucos anos.

Não posso me opor às novas tecnologias ou ensinar às famílias sobre o que fazer com seus filhos. Não posso, e nem devo. Quero, apenas, propor a reflexão sobre a falta de livros e revistas na rotina das crianças e como vemos, na condição de adultos, a compra desses produtos como um gasto, e não como investimento.

A participação no FIQ ainda ressoa em meus pensamentos porque quero acreditar no nosso poder de transformar cada criança ao nosso redor em uma Matilda. Contudo, se continuarmos sendo obstáculos da procura infantil pela leitura, a vida real não vai poder nos garantir o mesmo final feliz do livro/filme.

Antes de pagar para ver, precisamos mudar o jogo. Lembre-se disso no próximo passeio com a criança que você ama. E, sempre que possível, dê uma chance de fazer feliz a criança que ainda vive dentro de você.

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