Série After: Trish, o ‘não dito’ e a história construída por atos

Por Cinthia Demaria, jornalista e psicanalista

Todo mundo quer entender um pouco mais sobre a progenitora de Hardin, e com razão. Onde há uma história complexa, sempre há outra ainda mais, principalmente quando ela envolve questões parentais e familiares. A escolhas de Trish fadaram o filho e todo o contexto que a envolveu, a consequências que ela nunca soube dizer e nem tratar. Alguns psicanalistas dizem que passamos a vida tentando resolver os traumas causados em nossos primeiros anos de vida. Hardin está aí para nos provar isso.

Alerta de Spoiler! Se você não leu até o 5o livro da série After, não leia este texto.

Pelo visto, fazer “escolhas erradas” nunca foi um privilégio do protagonista da obra de Anna Todd. Quem leu a história completa de After sabe que todas as ações de Trish impactaram no desenvolvimento do filho, desde a história dos “dois pais” até o seu desenrolar com Tessa e os incontáveis traumas com que ele precisou lidar.

Resumidamente, Trish casou-se com Ken amando Vance, com quem teve o seu único filho. Sem suportar a ideia de viver às sombras de um casamento falido, e sem qualquer tentativa de tentar resolver isso com a esposa, Ken tampona sua história pela via do álcool. Ele conta por diversas vezes que sempre teve apreço por Hardin, mas que, enquanto viviam no mesmo lar, nunca conseguiu suportar a história de traição entre sua amada e o seu melhor amigo que o garoto representava.

Percebam como Hardin já nasce em um contexto de culpa. Na psicanálise a gente diz que a chegada de um bebê antecede seu nascimento, pois ele é inserido na linguagem antes mesmo de falar: já falam por ele, já criam o universo dele e até o nomeiam. “Ele vai se chamar Hardin e significa o resultado de uma história de amor e traição”, que é como Trish descreveria isso, se tivesse tido a chance de falar.

Uma das histórias mais marcantes do alcoolismo de Ken: por um acerto de contas entre os amigos de Ken, Trish é estuprada dentro da própria casa, aos olhos do seu filho. As consequências disso para ele nós já conhecemos. Se pudesse ter uma “vingança” pelo fato de a esposa ter se deitado com o melhor amigo, nesse momento Ken haveria conseguido; mas não foi bem assim, e nunca foi esse o propósito. Sem a existência de um casamento que justificasse a união entre eles, Ken muda-se para os Estados Unidos e deixa a esposa e o filho (que nunca foi seu) para trás. Por consequências da vida, Vance também nunca o assumiu e Trish paga caro pela decisão, até o filho tomar consciência de toda história.

Traumas acontecem, o tempo todo, com todo mundo. Mas, se isso não é dito, jamais é resolvido.

Vejam como essa mãe “pagou” pela sua história, até pelo filho que fazia escolhas erradas e teve que sair do lado dela, justamente por nunca ter tido a chance de resolver o trauma da sua infância. Trish fica sozinha, Hardin vive uma vida ‘de mentira’, sem conseguir relacionar com os seus pais e com o próprio amor, por falta da palavra.

Já disse uma vez que a família de Hardin peca pelo silêncio, principalmente de Trish. Se ela tivesse falado desde o início que amava Vance e assumisse essa escolha, talvez nada disso tivesse acontecido. O fato é que as pessoas vivem reféns de suas culpas, de não poderem amar e serem quem elas quiserem ser. Ela omite para Ken o seu amor verdadeiro, omite de Hardin sua verdadeira história e omite de si a chance de ser feliz. O ‘não dizer’ vai trazer para essa mulher uma culpa impagável ao longo da vida.

Trish só consegue amar de verdade e ter uma vida tranquila quando Hardin desamarra – aos trancos e barrancos – todo esse nó. Horas antes de se casar com o vizinho (na tentativa de viver um novo amor), ela ainda mantém uma relação com Vance, que dá a ideia de que algo disso ainda não foi resolvido. É uma mulher que constrói a sua história por atuações e prefere, inconscientemente, correr o risco de ser pega pelo filho a contar toda a verdade pra ele.

Vance e Ken também erram em não dizer a verdade, mas há algo que é da história dela. Trish é, para mim, uma versão antagônica de Tessa, que num primeiro momento é aparentemente frágil, mas que assume suas escolhas logo a princípio. Não foi preciso um trauma maior para que ela pudesse terminar com Noah o relacionamento que ela nunca quis viver, e isso muda muita coisa.

Trish atua tanto para o filho que mal se permite sair da vida miserável que levava em Londres, como Hardin definia. É uma história que envolve “não poder dizer”, muito menos viver, um amor que cultivou na juventude e traz consequências traumáticas para uma maternidade que nem ela consegue suportar.

Ver Hardin pequeno dividindo a casa com Ken, o homem que ela não amou, traz sofrimento. Ver o jovem que Hardin se torna a partir das escolhas difíceis com outras mulheres também tem um preço alto pra ela, e por isso se satisfaz tanto quando conhece Tessa. É como se depositasse nela a responsabilidade de algo que ela mesma nunca conseguiu fazer pelo filho: transformá-lo em um homem melhor.

Não fecharia essa história como uma “mentira” pura e simplesmente, porque não é o caso julgar. Cada um sabe da sua dor de existir e talvez Trish tenha sido ensinada a nunca se posicionar frente a um outro; tenha sido ensinada que a felicidade seja sinônimo de culpa.

Ninguém faz escolhas erradas por maldade, não há decisão sem um porquê. De qualquer forma, não podemos deixar de alertar para o “não dito” que carrega um sofrimento que não é resolvido pelo amor do vizinho – que, felizmente, ela irá encontrar depois –, mas pela exposição de toda a sua história.

Em resumo, não é tamponando uma falta que ela vai deixar de existir. Não há álcool nem paixão que a suporte. Só há o dizer. Quando o ato dá lugar à palavra, há, então, paz. O conhecimento a liberta, liberta Hardin e faz de After uma história feliz, no final das contas.

Sobre a autora Cinthia Demaria

Eu provavelmente tenho o dobro da idade da maioria das leitoras de Anna Todd. Sou jornalista por profissão há dez anos e psicóloga há quase três. No meu aniversário de 31 ganhei de um grupo de amigos psicanalistas o livro After. Sou pesquisadora da área de Psicanálise e Cultura Digital e desenvolvo trabalhos com adolescentes. Esta foi a desculpa que arranjaram para me presentear com Anna Todd ao invés de uma obra de Sigmund Freud ou Jacques Lacan. Ainda bem que fizeram isso.

Em um mês eu já tinha lido a série completa. E agora é só o Depois.

3 Comentários
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    Aline Cenci at 12 de agosto de 2019 Responder

    Cinthia, boa tarde!
    Li sua crítica, muito bem construída, sobre After, sobre a História do Hardin.
    Não sou adolescente, sou uma Relações Públicas de 38 anos! Sempre gostei de cinema e literatura, sem preconceitos. Assisti ao filme, sem grandes expectativas e, me surpreendi como o enredo e a simplicidade de atuação dos protagonistas segurou a atenção durante um pouco menos de duas horas. A sensualidade no olhar do personagem Hardin. Isso me despertou o interesse no conjunto literário, e, percebi que a narrativa é direcionada à um determinado público, mas, o contexto geral é bem mais estruturado do que aparenta de início. Ainda não terminei de ler a obra toda, mas, é uma perfeita válvula de escape para o dia a dia. E, o Hardin me cativou bem mais do que Mr. Grey ou Edward Cullen.

    1. avatar image
      Cinthia Demaria at 13 de agosto de 2019 Responder

      Ei Aline!
      Concordo com você. A leitura de After me acompanhou em um momento muito interessante e os pontos das subjetividades de cada personagem foram o que mais me mantiveram.

      Não é o romance em si que segura o leitor, mas a intriga e a questão subjetiva que os faz manter naquela posição, ao mesmo tempo em que os permite sair do lugar.

      Bom encontrar uma leitora como você, e obrigada por acompanhar o meu trabalho. 🙂

  2. […] sobre o assunto, por nunca ter discutido e por ter mantido verdade ocultas, como tratei no texto Trish, o não dito e a história construída por atos. Se fosse resumir em dois sentidos, o sexo, para Hardin, pela primeira vez na vida, significou […]

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