TGIF: Thank God is Fiction!

Ando falando sobre como escrever um livro e confessando minhas dificuldades em trabalhar no meu, uma obra de ficção. Tenho a impressão de que escrever ficção é tão fácil quanto qualquer outra coisa – e essa frase pode servir tanto aos otimistas quanto aos pessimistas. Otimistas ficarão felizes em saber que podem inventar histórias e pessimistas dirão que “escrever qualquer coisa é muito difícil”.

Pra mim, um obstáculo é se manter firme dentro da ficção, uma vez que a vida real, a não-ficção, é bastante distrativa. Eu, por exemplo, não saberia escrever duas linhas de ficção fantástica, como O Mágico de Oz ou Game of Thrones. Dispenso macacos voadores e dragões apesar de amar ler sobre eles. Minha escrita se baseia no mundo real, mas a dúvida sempre foi: devo ser fiel ao mundo real ou posso mudar uma coisinha aqui, outra ali?

Quem me livrou desse bloqueio criativo foi – adivinhe – Stephen King. Em Sobre a escrita ele fala que a hiperdescrição da ficção pode atrapalhar não só o autor, mas, também, o divertimento do leitor.

Veja esse trecho, em que King discorre sobre uma cena de uma gaiola descrita de maneira minuciosa. Ele faz um paralelo entre descrição (o que o escritor escreve) e recepção (o que o leitor lê) utilizando a seguinte informação: “aqui temos uma mesa coberta com um pano vermelho. Nela está uma gaiola do tamanho de um aquário pequeno. Na gaiola está um coelho branco de nariz e olhos rosados. Nas patas da frente está um toco de cenoura que ele rói alegremente. Nas costas, escrito em tinta azul, está o número 8”. (p. 95)

É fácil ser desleixado ao fazer comparações toscas, mas a alternativa é uma excessiva atenção aos detalhes que tira toda a diversão da escrita. O que eu deveria dizer, ‘na mesa tem uma gaiola com um metro de comprimento, 60 centímetros de largura e 36 centímetros de altura’? Isso não é prosa, é um manual de instruções. O parágrafo também não diz de que material é feito a gaiola. Telas soldadas? Vigas de ferro? Vidro? Mas isso realmente importa? Todos entendemos que dá para ver do outro lado da gaiola; nada além disso nos importa. A coisa mais interessante aqui não é nem o coelho que rói a cenoura, mas o número que ele traz nas costas. Não é um seis, nem um quatro, nem 19,5. É um oito. É para isso que estamos olhando, e todos nós sabemos. Eu não disse a você. Você não me perguntou. Eu jamais abri minha boca, e você jamais abriu a sua. Nós não estamos nem no mesmo ano, quanto mais na mesma sala… mas estamos juntos, estamos próximos.

Estamos tendo um encontro de mentes”.

Após ler esse manual de redação fictícia que é Sobre a escrita, me apoiei em duas ideias de King sobre a arte de criar novos mundos:

1 – não me preocupar com detalhes que não interessam a ninguém;

2 – não fazer panos de fundo que não serão usados de maneira ativa na história.

Uma obra de ficção tem que dar apenas as informações necessárias para manter o leitor engajado, sem dar voltas ou inventar moda para “fazer volume”. E, como a vida não é tão simples quanto um livro, há a tentação de sempre dar inúmeros detalhes ou, ao contrário, sermos tão práticos que informações importantes possam fazer falta.

Como dizia Mario Quintana, “quando alguém pergunta ao autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro”. Eu não quero que a balança pese para o lado de cá e, para isso, estudei melhor esse negócio todo de fazer ficção e vou falar nesse post meus principais insights.

Lembrando que escrevo todos esses artigos enquanto eu mesma tento concluir minha obra, eles serão enviesados para o meu tipo de ficção, que vou chamar de ”ficção realista”. Acho que a maior parte das coisas que aprendi vale para qualquer tipo de ficção, mas é sempre bom checar se há algo mais a aprender por aí – spoiler alert: sempre há – sobre o enfoque que você quer dar.

Tenha em mente que o que torna uma ficção ótima é o compromisso do autor em inventar, gerenciar e desenvolver os rumos do universo criado. Se não houver esse cuidado, as coisas tendem a desandar.

Realismo x Credibilidade

Uma das dúvidas que dirimi nos últimos anos, com leituras como a de Stephen, Joseph Campbell e Austin Kleon, dentre tantos outros bons autores, é sobre o dilema do realismo.

Uma ficção realista precisa, mesmo, obedecer às regras do mundo real? Talvez sim, talvez não.

Vou dar um exemplo: criei uma personagem que é professora de física no ensino médio. Não sou e nunca fui professora de física e tive muito medo de desenvolver essa personagem sem ter conhecimento de causa. Conversei com professoras e professores de física do ensino médio, mas ainda não estava satisfeita. Quase entrei na graduação de física e tentei dar aulas para ver como era isso.

Mentira. :p

Mas o ponto é: fiquei, por muito tempo, tentando contornar minha professora de física de coisas reais sobre uma professora de física antes de me dar conta de que se tratava de uma obra de ficção – e que a profissão da personagem era apenas um pano de fundo. Era algo que ela era e pronto. Meu livro não é um livro de física, então não tem problema se eu não souber cinquenta e nove equações importantíssimas para que alguém acredite na personagem em questão.

Assim como os atores e atrizes da Globo, fiz um “laboratório” através de bate-papos com pessoas dessa área que me contaram o que eu precisava saber: a rotina de um professor de ensino médio, o salário, como as aulas são pensadas, como são dadas. Essas informações não necessariamente aparecem no livro, mas me dão a oportunidade de traçar uma rotina crível a essa personagem.

Ela não é real, o livro não é real, apenas tem traços de algo real. A questão aqui não se trata de realismo, e sim de credibilidade.

Em outras palavras, a ficção precisa ser crível, mas isso não significa que ela precise ser realista. Um exemplo é justamente a ficção fantástica. Mesmo quando é baseada no “mundo real”, sempre será ficção. Pegue, por exemplo, Harry Potter. Um menino real, em uma família disfuncional real, que recebe um convite real para ir para uma escola real de magia.

Não existe isso no mundo real?

Quem se importa?

A narrativa é crível.

O mundo de Harry Potter existe e funciona daquela forma. Alguém entra na parede de uma plataforma de metrô e pronto. Ninguém vai ler Harry Potter e dizer “mas que absurdo, esse tipo de coisa não existe”. Não fazemos isso nem com biografias. Não questionamos várias passagens da biografia de alguém – que, a seu modo, é uma obra de ficção –, então não há muito espaço para criticar o realismo em ficção fantástica.

E ficção realista? A mesma coisa. Se alguém for ler Marian Keyes ou Agatha Christie pensando “duvido que chova tanto assim nesse lugar” ou “matar assim num trem? Impossível”, vai perder toda a diversão.

Os elementos que tornam uma história factível são os mesmos que, às vezes, a impedem de ser uma ficção. Mesmo nas ficções realistas a credibilidade é o que conta mais.

Todo mundo sabe, por exemplo, que um diálogo direto da Bridget Jones quase nunca ocorre na vida real. Na maior parte das vezes não temos a resposta para uma briga ou lacração na ponta da língua e só vamos nos lembrar da melhor resposta, ou melhor cantada, ou melhor reação a algum xingamento, depois do ocorrido, quando chegamos em casa, estamos sozinhos/as e pensamos “puxa, eu deveria ter falado isso naquela hora”.

Mas, se o livro de ficção fosse acompanhar esse ritmo, ele seria chato. Os diálogos precisam ser interessantes. A gente apenas confia que ele é bom e segue em frente na leitura (a menos que o diálogo seja horrível, é claro).

O ponto é: não sofra se seu personagem principal deu uma resposta tão perspicaz ao seu arqui-inimigo no primeiro diálogo exposto pois, se isso fizer sentido na narrativa, é o que importa. Sua ficção só precisa ser crível: as pessoas precisam acreditar no mundo criado; ela não precisa ser realista, mesmo quando é baseada em elementos da vida real.

Deus ex machina

Uma das alternativas à credibilidade na ficção é o famoso recurso deus ex machina, que, muito comumente, é utilizado para estragar uma boa história. A expressão, que vem do latim, remete a soluções malucas, inesperadas ou improváveis para um problema criado pelo autor.

Muitos vão concordar que este foi o recurso empregado no fim da série LOST. Eram tantas as pontas soltas e, de repente, o espectador está frente a uma amarra um pouco… ousada demais. Do tipo: “isso não faz muito sentido, mas não interessa, aqui está sua resposta”.

Quanto mais deus ex machina um/a escritor/a utiliza em uma obra de ficção, menos credibilidade ela terá. Afinal, o leitor vai entender que não existe razão em ler o livro pois o autor achará as respostas mais absurdas para os conflitos que gera. Não fazer sentido por descompromisso é um perigo em obras de ficção. Aliás, acredito que esse seja exatamente o ponto mágico de inventar histórias: pelo menos nelas podemos ter uma resposta. Na vida real, nem sempre temos a chance ou a sorte de achar um fechamento lógico para as questões que nos cercam.

Stephen King também fala sobre isso ao discutir os elementos trazidos à narrativa, comparando a escrita ao teatro:

Existe uma velha máxima no teatro que diz: ‘Se existe uma arma no console da lareira no Primeiro Ato, ela deve ser usada no Terceiro’. O contrário também é verdade; se a camisa havaiana da sorte do protagonista tem um papel importante no final da história, ela deve ser apresentada no início. Caso contrário, ficará parecendo um deus ex machina (o que, de fato, é)”.

Isso significa que, se você insere algum detalhe, algum elemento na narrativa, sem precisar utilizá-lo mais tarde, ele pode ser confundido com o famoso “encher linguiça”, o que também transforma a credibilidade da ficção em pó.

Não se esqueça: ela não precisa ser realista, mas o leitor precisa acreditar nela. E isso começa pelo autor: você acredita na ficção que está escrevendo? Acredita que ela é verdade? Se sim, começou por um bom caminho.

Por mais que adore uns textos opinativos (como esse aqui) e obras de autoajuda, devo confessar que escrever ficção é muito, muito mais divertido. Vai por mim: se você acredita no que está fazendo, os personagens começam a falar com você e te apontar os caminhos. Nem sempre reais, mas muito possíveis.

Se tivermos sorte, um dia as camisetas com a estampa das nossas ficções estarão na mesma arara das que tem um imenso círculo escrito “9 ¾”. Ninguém nunca viu essa plataforma em uma estação e, ainda assim, ninguém duvida que ela exista, porque uma escritora genial nos convenceu de que ela é real.

E isso basta.

2 Comentários
  1. avatar image
    Claudia at 23 de abril de 2019 Responder

    Laís, você é uma escritora genial.

    1. avatar image
      Lais Menini at 23 de abril de 2019 Responder

      Muito obrigada pelo elogio, Claudia! Espero merecer sua leitura sempre. 🙂

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