O guia do Mochileiro das Galáxias e o contemporâneo

O Guia do mochileiro das galáxias, de Douglas Adams, conta a história de Arthur Dent, um terráqueo que pega carona em uma nave especial alguns minutos antes do fim do mundo. Isso você já sabe. O que talvez ainda não saiba é que, num desses dias, em que eu não tinha nada a problematizar, tentei analisar O Guia por outra ótica, mais alegórica – e sei que, já nesse início, os estudantes de Letras vão me xingar…

Mas, enfim, a ideia para esse estudo me ocorreu quando participei de um seminário sobre políticas do contemporâneo, na UFMG, em 2018. Um dos artigos estudados nessa aula apontou para uma citação de Giorgio Agamben que dizia: “ser contemporâneo é voltar a um presente no qual nunca estivemos”. 

Me ocorreu que essa frase encontra o cerne da história de Arthur Dent, protagonista de O Guia. 

Uma coisa levou à outra e acabei encucada nessa ideia: será que o livro pode ser visto como uma ficção fantástica sobre nada menos que o próprio conceito do contemporâneo? Mais que isso: e se a literatura popular pudesse ajudar as pessoas a compreender conceitos sociais e políticos mais complexos por essas espécies de… alegorias?

Não entre em pânico!

O Guia do Mochileiro das Galáxias é uma ficção na qual podemos relacionar alguns conceitos do contemporâneo apresentados em estudos de literatura. Em Ensaios sobre o contemporâneo, de Célia Pedrosa e outros, alguns termos pertinentes à análise literária, como arquivo, comunidade e pós-autonomia, entre outros, podem ser encaixados na narrativa de Douglas Adams.

O leitor não precisa ser conhecedor de nenhum desses conceitos, em seu viés acadêmico, já que a correlação entre o que é e o que o autor mostra é feita de forma inconsciente. Tipo: não é preciso ser doutora em letras para entender o que Adams quis dizer com “o problema do mundo é a burocracia”. 

Agamben diz que:

“pertence verdadeiramente ao seu tempo, e é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com ele (…), mas precisamente por causa deste deslocamento e anacronismo, ele é capaz, mais do que outros, de perceber e aprender o seu tempo”. (AGAMBEN, 2013, p. 58-59)

Ora, ora, será que temos aqui um Sheroke Homes

Na visão de Agamben, como é preciso distanciar-se do presente, ou do agora, para poder ver o que é o contemporâneo em sua essência, e pode-se chamar de ser contemporâneo, temos o primeiro elo entre o conceito e a narrativa de Douglas Adams: Arthur Dent não só se distancia dos fatos, mas deixa o planeta para rever suas próprias questões, que se alternam entre política, sociedade, religião e outras reflexões de sua época. 

Não há como imaginar uma distância maior do lugar e do presente do que essa para justificar tal alegoria. Viajando no tempo, indo e voltando, com um ponto de vista real, Dent alcança a façanha (ficcional) de viver o contemporâneo. 

Resta saber: a alegoria é deliberada, consciente ou é apenas uma agradável conjunção de fatores?

O surgimento da ideia central e a criação da comunidade

Ensaios sobre o contemporâneo faz, em sua definição do termo “Arquivo”, a seguinte proposta: “não sei se viemos do pó, nem se voltaremos a ele, mas não há dúvida de que vivemos nele, que agora lhe dedicamos. A essa agoridadechamamos de contemporâneo”.

Alguns arquivos de Douglas Adams, compilados na biografia do escritor por Jem Roberts, nos dá um bom panorama do contexto político e social da época em que o romance foi escrito – e, com base nisso, como Adams pensava que o futuro seria. 

Na obra, vemos sinais que levaram o autor a criar a narrativa do Guia. O enredo principal, por exemplo, veio de uma experiência que Adams teve viajando para a Europa, com nada além de uma mochila e um guia dos lugares que pretendia visitar. A ideia central foi impulsionada pela inspiração do autor nos romances de Kerouac. 

Nosso amiguinho Walter Benjamin nos diz que “toda tentativa de gerar uma demanda fundamentalmente nova, visando a abertura de novos caminhos, acaba superando seus próprios objetivos”. 

Quando Adams escreveu O Guia do Mochileiro das Galáxias, ele provavelmente não estava tentando transformá-lo em uma alegoria de conceitos eruditos – embora ele fosse, pessoalmente, profundamente interessado em política, física e biologia, campos que carregam tantos aspectos eruditos e complexos conceitos como a própria literatura. 

Mesmo assim, o fez, porque sua narrativa ultrapassou o objetivo de apenas contar um conto: a linguagem simples e bem-humorada traz elementos que conferem um visual interessante e acessível ao que ele tenta dizer, abrindo espaço para interpretações atemporais.

Outro conceito contemporâneo que se encaixa no trabalho de Adams é o senso de comunidade. Autores de Ensaios sobre o contemporâneo afirmam que

“a comunidade aparece como aquilo a que se deve aspirar, embora sempre constitua uma irrealizável, que lembra o homem de sua finitude e impossibilidade de perfeição” (56-57). 

Douglas Adams apresenta aos leitores de O Guia apenas dois personagens nos quais eles podem encontrar semelhança, por serem humanos: Arthur Dent e Tricia McMillian. Os outros personagens são seres de outros planetas, culturas, espaços ou tempos – e, ainda, discutem política, economia, tecnologia e ciência, até a própria comunidade, para se manterem vivos no vasto universo. 

A “comunidade de não iguais, mas semelhantes” é inserida na obra com caráter de urgência: os personagens de Adams precisam perceber como lidar com uns aos outros nesse momento, a fim de encontrar os significados de sua própria existência.

Ford Prefect e Marvin conceituados no contemporâneo

Falando nisso, a comunidade criada por Adams carrega um interessante conjunto de personagens. Esteja o leitor ciente ou não de seu papel na narrativa do contemporâneo, eles dão sentido ao tempo e espaço onde o autor deseja que seus leitores estejam. 

O primeiro exemplo disso é Ford Prefect, melhor amigo de Arthur Dent e alienígena responsável por salvar a vida de Dent, colocando-o em uma nave espacial. Ford Prefect é, na verdade, um carro de marca, produzido pela Ford, entre 1938 e 1961. Quando o alienígena veio à Terra, escolheu esse nome por tomá-lo como um “nome muito comum que passaria despercebido” ao se identificar como ser humano. 

Esse é um marco temporal que nos mostra quando a narrativa começa: meados dos anos 1900 ou, para sermos precisos, na década de 1970.

Por outro lado, temos Marvin, o Androide Paranoico, um robô construído com a mais alta tecnologia –incipiente nos anos 1970, quando o livro foi publicado. Seu principal traço de personalidade é a depressão profunda, doença considerada pela World Health Organização “o mal do século XXI”. Marvin está sempre tentando cometer suicídio, sem nunca ter sucesso, pois matar a si próprio está fora de suas capacidades de robô. 

Esse personagem, em particular, se encaixa bem no conceito literário de pós-autonomia, onde os autores dos Ensaios sobre o contemporâneo nos fazem pensar em uma “imagem terrível do mundo moderno: (…) sociedade feita apenas de reflexos, de falsas aparências e ilusões, um discurso constituído apenas por efeitos de sentido separados de tudo. Razão suficiente para levar alguém ao suicídio”. 

Portanto, Marvin é um personagem que não pode nos dizer quando a narrativa está, pois traz elementos do futuro, mas nos mostra onde – em uma comunidade de seres semelhantes –, se levarmos em conta as formas como coloca em xeque os limites de sua própria natureza para fazer parte de uma comunidade que se estabelece na narrativa.

Entre um personagem que leva o nome de um carro do século XX e um que é tecnológica e psicologicamente relacionado ao futuro, O Guia do Mochileiro das Galáxias abre espaço para interpretação de outros conceitos do contemporâneo.

Literatura popular como bússola política

Para explicar meu ponto de vista do Guia do Mochileiro das Galáxias como um “manual de instruções da política moderna”, vou voltar a Giorgio Agamben, que diz:

Os historiadores da literatura e da arte sabem que entre o arcaico e o moderno há um compromisso secreto, e não tanto porque as formas mais arcaicas parecem exercitar sobre o presente um fascínio particular quanto porque a chave do mundo moderno está escondida no imemorial e no pré-histórico. Assim, o mundo antigo no seu fim se volta, para se reencontrar, aos primórdios; a vanguarda, que se extraviou no tempo, segue o primitivo e o arcaico. É nesse sentido que se pode dizer que a via de acesso ao presente tem necessariamente a forma de uma arqueologia que não regride, no entanto, a um passado remoto, mas a tudo aquilo que no presente não podemos em nenhum caso viver e, restando não vivido, é incessantemente relançado para a origem, sem jamais poder alcançá-la. Já que o presente não é outra coisa senão a parte de não-vivido em todo vivido, e aquilo que impede o acesso ao presente é precisamente a massa daquilo que, por alguma razão (o seu caráter traumático, a sua extrema proximidade), neste não conseguimos viver. A atenção dirigida a esse não-vivido é a vida do contemporâneo. E ser contemporâneo significa, nesse sentido, voltar a um presente em que jamais estivemos”. (AGAMBEN, 2013, p. 70)

Difícil falar algo depois dessa chapuletada, né? Mas vou tentar, como encerramento dessa parte 1, porque ainda tem muita coisa a ser dita ainda. 

O Guia do Mochileiro das Galáxias é um best-seller. Não se trata de literatura erudita, mas pode ser considerada uma daquelas narrativas que sobrevivem por gerações justamente por seu viés popular. Embora tenha linguagem acessível, salpicada de humor e boas doses de sarcasmo, traz temas complexos à vida, independentemente de sua relevância para as prioridades do leitor.

Estamos falando de uma imersão completa em temas como política, religião, ciência, tecnologia e sociedades através do tempo. Não é pouca coisa. Quando lemos Douglas Adams tendo noção dessa responsabilidade, a experiência de leitura muda. É mais intensa. Afinal, ele está falando, nas páginas de um “livro infanto-juvenil” sobre tudo – absolutamente TUDO – que nos trouxe até o momento presente.

E onde queremos chegar?

A grosso modo, em lugar nenhum – e, ao mesmo tempo, em todos os lugares.

Douglas Adams leva o leitor a pensar em seu próprio tempo ao criar, através do dispositivo de contar histórias, um tempo e um espaço que não existem. Ele fornece aos seus leitores elementos para posicionar sua atenção no tempo da narrativa, como a data cronológica – seu prólogo situa os acontecimentos “quase dois mil anos depois que um homem foi pregado em um pedaço de madeira por dizer que seria ótimo se as pessoas foram legais umas com as outras para variar” e, ao mesmo tempo, os deixa livres para escolher quando ir a seguir, conduzindo os eventos de uma forma fantástica.

Em outras palavras, o que nosso amigo Douglas faz é misturar existências, espaços e tempos sem deixar para trás a situação em que Arthur Dent, o protagonista, está agora. O Guia do Mochileiro das Galáxias pode ser estudado como uma alegoria do contemporâneo porque, na escuridão da ignorância, ele traz a luz da observação participante do leitor, mesmo que não haja a linha de chegada mostrando uma resposta.

Continue lendo esse ensaio!

Confesso que escrevi coisa demais sobre isso! Por isso, resolvi quebrar esse ensaio em partes – e, em breve, a continuação estará nos links aqui embaixo.

Aproveito para deixar o link de compra de todas as obras citadas nessa primeira parte:

O Guia do Mochileiro das Galáxias

O que é o contemporâneo

Indicionário do contemporâneo

A espetacular e incrível vida de Douglas Adams

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