Existe uma premissa do jornalismo chamada fator de noticiabilidade. A gente aprende na faculdade que “o cachorro morder a pessoa não é notícia, a notícia é a pessoa morder o cachorro”.
Quando passou pela minha timeline a notícia “Helicóptero cai na rodovia e bate em um caminhão”, me lembrei dessa premissa do jornalismo. Um helicóptero se envolver em um acidente rodoviário com um caminhão é a aula do fator de noticiabilidade: a pessoa mordeu o cachorro, e como mordeu. Tragam logo a antirrábica.
Nasceu a notícia.
O jornalismo morreu.
A TV está ligada na Band. Boechat morreu. Boechat estava em um helicóptero que caiu em cima de uma rodovia. Boechat, que todos os dias me dava bom dia às sete e meia da manhã, dizendo “Bom dia, Belo Horizonte”, e eu nunca sabia em que ordem esse cumprimento viria: antes do Rio de Janeiro, de Brasília, da Flórida?
E falava coisas com as quais nem sempre eu concordava, apesar de concordar 95% das vezes. Eu concordava muito. Por isso minhas manhãs eram mais fáceis. Tragédia? O ponto de vista do Boechat me fazia inflar e tranquilizar ao mesmo tempo. Até quando não estava, ele dizia o que eu queria ou precisava ouvir.
Boechat está de férias. Não vem hoje. Olha, eu também preciso de umas férias.
Boechat tirou licença para cuidar da saúde mental. Aplaudo. Concordo. A gente precisa desses momentos.
Boechat é um amigo que nunca me conheceu, e, com a TV ligada na Band, o rádio ligado no celular, me lembro do meu estágio em rádio, fazendo ronda e ouvindo as notícias por todos os lados, para poder apurar e entender como a notícia deve ser dada.
Agora, não entendo. Honestamente, não entendo como essa notícia pode ser dada. Estou vendo o fato jornalístico ocorrendo ao vivo e não consigo entender como isso pode ser dito. Ou escrito. Não sei. Não entendo.
Não consigo parar de pensar no que vai ser da minha manhã de amanhã sem o bom dia do Ricardo Boechat. Nunca estivemos juntos, ele nunca soube da minha existência, mas ele é meu amigo. Meu colega jornalista. Meu ídolo no jornalismo. Minha referência de gente legal.
Don McLean um dia cantou, em homenagem a uma vítima de acidente aéreo:
A long, long time ago
I can still remember
How that music used to make me smile
And I knew if I had my chance
That I could make those people dance
And, maybe, they’d be happy for a while
But february made me shiver
With every paper I’d deliver
Bad news on the doorstep
I couldn’t take one more step
I can’t remember if I cried
When I read about his widowed bride
But something touched me deep inside
The day the music died
Troque a palavra “music” para a palavra “rádio” e teremos uma música tão atual quanto o dia em que foi gravada, em 1971.
No meu cérebro, agora, sua voz diz “minha doce Veruska”, que é como ele se referia à esposa quando falava sobre ela.
A doce Veruska está de luto, mas não sofre só.
Que minhas lágrimas cheguem até a família desse professor do jornalismo humano, jornalismo verdade, jornalismo guerreiro, para desespero daqueles que insistem em dizer que só existe a imprensa marrom, que a imprensa brasileira não vale a pena, que está totalmente perdida.
O jornalismo não está morto e, ainda assim, o jornalismo morreu hoje.
Sempre me lembrarei do dia em que a morte do jornalismo passou na televisão, obrigando meus olhos salgados a deglutir a notícia.
Também me sinto como quem perde um amigo que não me conhecia. E tomei a liberdade de compartilhar seu texto no meu Facebook. Beijos
E fazendo salgar os olhos dos outros…
Um texto com alma lavada e enxugada na emoção!
Hoje acordei com um vazio na alma . Minhas manhãs não serão mais as mesmas. Vc fará muita falta neste nosso país tão sofrido e sem voz
Perdi uma referência de como lidar com a politica, com os políticos, e de como entender os fatos. Ele era claro, preciso, coerente (são todos sinônimos?) . Eu perdi um conselheiro.
Lila, lindo texto que mesmo cru carrega tanto sabor. O sentimento que fica é da partida do parente íntimo que nunca te conheceu. Muito triste. Também contava os dias pra volta das férias dele e, confesso, durante elas nem sempre ligava o rádio. O carequinha de todas as manhãs deixava o dia mais lógico pra mim. Chamava as coisas pelo nome, dava bronca “ao vivo” e era muito responsável nas opiniões (mesmo as do Malafaia). Hoje, 12/02 foi um dia estranho, uma manhã estranha, um rodar pela cidade estranho. Vai passar. Mas a ausência ficará. Morte parte do jornalismo que sou.