Nenhuma revolução que eu conheço foi feita em silêncio. As pessoas precisam se levantar e debater sobre os problemas que rondam a sociedade se quiserem encontrar uma solução para seus problemas. O feminismo é uma revolução não-silenciosa que, quanto mais causa barulho, mais parece causar aversão a quem não se identifica com a causa. Por que será?
Há quatro anos assisti a um vídeo (esse aqui, não sei se ainda vai existir quando você ler esse artigo) em que uma garota mostra as razões para não ser feminista. Ela usa o argumento de que feminismo não é um movimento de igualdade. Ainda que eu a respeite como ser humano, acredito que ela usa um argumento errado pra provar um ponto. Acho que ela ainda não entendeu o que realmente é o movimento. E, pra provar isso, vou responder à questão que ela faz no início de sua fala:
POR QUE NÃO VEMOS FEMINISTAS FALANDO DOS BENEFÍCIOS QUE AS MULHERES TÊM SOBRE OS HOMENS?
Tipo o que?
O primeiro exemplo que ela dá é de que homens são mais estuprados nas prisões dos EUA do que mulheres no país.
Mas esses homens nas prisões dos EUA estão sendo estuprados por quem, mesmo?
No Brasil, os machistas argumentam que mais homens são assassinados do que mulheres, anualmente. Esse é um dado válido. Mas, quando vamos fundo nele, vemos que são os homens que estão matando outros homens, mais do que as mulheres que matam homens. Homens também matam muito as mulheres. Então, homens estão matando homens e mulheres. Homens estão abusando de homens e mulheres.
Isso significa que mulheres são santas e não fazem nada errado?
Não.
Isso significa que, pelos números, os homens ainda são a maioria na escala de violência, contra homens e mulheres. Feministas falam disso todo dia.
No vídeo, a moça também fala dos homens sendo objetificados e… HOMENS OBJETIFICADOS?!
Ah, parou, né?
Onde é que homens são maioria nos prostíbulos, nos “cabarés” e nas maiores revistas de sexo e nudez para dar prazer de corpo-objeto ao sexo oposto? Onde é que os homens usam pouca roupa — ou quase nada — nas propagandas que vendem, sei lá, cerveja? Onde é que os homens andam nas ruas ouvindo assobios maldosos e comentários de mulheres se comportando como animais no cio, percebendo os homens como um pedaço de carne pronto para o sexo? Onde é que meninos de 12 anos já se encaixam na definição de possíveis parceiros sexuais de mulheres de 25, 35, 55, 85 anos?
“Mas na relação de privilegiado e oprimido, o homem nem sempre é o privilegiado. Veja os casos de divórcio, por exemplo. Os filhos quase sempre ficam com a mãe”.
Crianças ficando com a mãe depois de um divórcio: sim, acontece. Mas, muitas vezes, acontece porque os homens não querem carregar o fardo de criar os próprios filhos.
Nós devemos procurar os números que dizem quantos pais decidem se afastar dessa possibilidade antes de dizer que “ficar com as crianças é um privilégio da mãe”. Se os pais quiserem, eles podem lutar pela guarda de seus filhos. E, em certa idade, os filhos podem escolher ficar com os pais. Não devemos ou podemos nos encostar no argumento da família para falar de igualdade, ao menos não sem checar, primeiro, o número de pais que “abortam” seus filhos durante uma gravidez ou após um casamento desfeito, simplesmente por desejo de não fazer mais parte da vida das crianças e adolescentes.
“Mas homens são julgados por não serem homens suficiente. Não podem chorar, não podem ser sensíveis, senão não são homens de verdade”.
Vou esquecer que estamos em 2019 e isso é a coisa mais idiota de se pensar e dizer apenas que, quando isso acontece, acontece com homens sendo julgados por outros homens. É muito raro ver uma mulher gritando “você é uma grande bicha, está sendo sensível!” no meio da rua. Por outro lado, é raro ver homem fazendo isso? De novo: mulheres não são santas. Fazem essas idiotices também. Mas em menor proporção se comparadas aos homens.
Esse é um problema masculino, criado por homens, alimentado basicamente por homens, e devemos ensinar nossos próximos homens a não se tratarem dessa forma. Mas isso não torna a nossa posição de “mulher que pode chorar livremente” um privilégio.
“Mulheres ganham cotas de trabalho simplesmente por serem mulheres. É um grande privilégio”.
Historicamente, as mulheres chegaram fortes ao mercado de trabalho muito depois dos homens. Portanto, cotas serão necessárias até não serem mais necessárias para equilibrar a balança. Até que seja natural ver mulheres em posições ocupadas por homens, ganhando o mesmo salário que eles. Nesse dia, dar um trabalho a uma mulher só por ela ser mulher será sim, um privilégio sexista. Mas, até esse dia chegar, cotas são a saída para corrigir injustiças milenares.
Quer um exemplo? O exército é uma das organizações mais machistas do mundo. Durante muitos anos, homens mandaram homens para as guerras. Você já viu Mulan? Um excelente filme da Disney, a propósito. Ela teve que fingir ser um homem para lutar no lugar do seu pai doente. E se mostrou uma grande estrategista.
Com o tempo, o exército percebeu que precisa de mulheres no campo e nas salas de estratégia.
A título de curiosidade, os EUA tem dez porta-aviões em atividade, oito a mais do que os países que têm mais porta-aviões no mundo, que são dois cada (Itália, Reino Unido, Espanha, Índia). Porta-aviões são navios importantes nas estratégias de guerra e defesa de qualquer país que se encontre (ou não) em conflito (direto). Em 2015, no Chile, tive o (esse, sim) privilégio de ver, por alguns dias, o porta-aviões americano George H. W. Bush atracado no porto de Valparaíso. A responsável por esse porta aviões, a “chefe”, é uma mulher. Em um navio com centenas, talvez milhares, de homens, existe uma mulher no comando. Isso, pra mim, é um grande avanço no quesito “mulheres em posição de liderança”.
Cotas de gênero ou raça são um modo de corrigir um bug no sistema, uma falha que não aconteceu ontem. Estamos falando de séculos com uma maioria branca, ou masculina (ou as duas coisas) dominando o ambiente de trabalho, os exércitos e até as religiões.
Então, repito: sim, cotas são necessárias até não serem mais necessárias.
Então, o que o feminismo faz?
O feminismo busca igualdade em um mundo onde essa igualdade ainda não existe.
A garota do vídeo nos mostrou alguns números, e a raiz de todos esses números não está fincada no movimento feminista. E não está relacionada à participação feminina na construção da sociedade. A raiz de todos esses problemas está ligada ao conceito de patriarcado, e ao comportamento masculino na história do mundo. O negócio é que os problemas femininos também têm os homens como o denominador comum.
Essa é a questão que tentamos resolver.
Quando os homens tentam deslegitimizar a luta feminista falando dos “privilégios” que temos em relação à eles, citam problemas que foram criados exatamente por eles. E, com esses argumentos, tentam silenciar os movimentos femininos (chame de feminismo ou de qualquer outra palavra que você quiser). Você percebe a ironia?
Eu respeito a garota do vídeo, mas tenho que dizer que, se ela não é a pessoa mais ingênua do universo, está levantando sua bandeira não-feminista com opiniões e informações equivocadas, porque a maioria dos dados que temos hoje são nada menos que reflexo dos problemas criados e alimentados pelos machos do mundo.
O que queremos é que o comportamento masculino pare de ser dominante. Mesmo porque, a história nos mostra, as guerras nos mostram, os rumos do mundo hoje nos mostram: o domínio masculino não vem dando muito cert 😉
… Mas, ainda assim, estamos longe de ser um movimento unitário
Feministas ainda divergem muito suas opiniões.
Há radicalismo, há falta de tato e há o fechamento de olhos para desigualdades dentro do feminismo.
As mulheres negras, por exemplo, ainda têm inúmeros direitos/privilégios/escolhas a menos do que as mulheres brancas. Devemos lutar pela igualdade dentro do movimento. Devemos acolher as irmãs de todas as cores e credos e abraçar suas lutas antes de advogar em causa própria.
Não somos coitadinhas, somos pessoas reivindicando direitos básicos, e queremos o reconhecimento de todas, e não só de uma parcela que nasceu no país mais legal ou com a cor mais “cômoda” para um mundo racista. O feminismo vai derrubar o machismo no dia em que a gente se juntar com braços fortes e com o sentimento de igualdade dentro do nosso próprio movimento.
Nem toda mulher se classifica como feminista. E nem precisa! Cada uma tem o direito de não se perceber feminista, não se julgar feminista e, até mesmo, como a menina do vídeo, “odiar” o feminismo.
Nenhum problema.
Mas, se sentir necessidade de gritar seu não-feminismo para o mundo e de mostrar as falhas dentro do movimento feminista, faça isso com dados e informações apuradas, e pelas razões corretas. Do contrário, você será só mais uma pessoa que, muito convenientemente, foi silenciada pela sociedade que acredita nas maravilhas do status quo — e, exatamente por tirar tantos benefícios dele, quer mantê-lo a qualquer custo.
Enquanto isso, durma tranquila essa noite. Eu e milhões de outras mulheres estaremos lutando por você.
*Esse texto foi originalmente postado em 2015 no meu perfil do Medium.
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