Dica de leitura: O peso do pássaro morto

Era uma sexta-feira de 2002 quando cheguei na escola bem cedinho, andando a pé e percebendo estar no contra-fluxo: enquanto eu entrava, as pessoas saíam. Estranhei a movimentação contrária ao usual e, ao avistar uma cara conhecida na multidão – a do Marcelo –, perguntei o que estava acontecendo.

– Não vai ter aula, uma menina da minha sala morreu.

– Quem?

– A Raphaella.

Dei mais alguns passos em direção à escola, ainda sem absorver a informação. Lembro-me de ter virado e feito mais uma pergunta:

– Quantas Raphaellas tem na sua sala?

– Uma só.

E foi assim que ocorreu, aos meus 15 anos, a primeira vez em que soube que alguém da minha idade tinha morrido. Raphaella estava na outra sala de primeiro ano, jogava vôlei no mesmo clube que eu e tinha um irmão mais velho que eu vivia paquerando. De vez em quando uma encontrava a outra no caminho do clube e dava uma carona. De vez em quando a gente ia a pé, mesmo.

Lembro de ter ido ao velório ainda usando uniforme, como muitas outras pessoas da escola, e de não tê-la reconhecido dentro do caixão. Raphaella estava iniciando a carreira de modelo e, vítima de um acidente de carro, ficou muito inchada. Seu rosto desfigurado, na última vez que lhe vi, nunca mais me saiu da lembrança.

Sua morte, em novembro, marcou o penúltimo mês em que eu viveria na minha cidade natal. Em janeiro de 2003 me mudei para Belo Horizonte e só voltei a São João del Rei de visita. Um dos sentimentos que carreguei na mala foi a dúvida: eu teria direito a sofrer essa perda, visto que ela tinha me afetado? Ou estava sendo exagerada em sentir sua falta, uma vez que não éramos amigas tão próximas?

Sem as redes sociais, sem conversa aberta sobre o tema – se é um tabu falar de morte agora, imagine há 17 anos –, pisando em um chão diferente e explorando novas possibilidades, tive que me virar para entender o impacto dessa morte na minha vida.

Quando abri O peso do pássaro morto, livro de estreia de Aline Bei, não sabia que, a partir daquela leitura, finalmente começaria a entender. Foram quase vinte anos de espera para poder colocar pra fora, nas palavras de outra pessoa, exatamente aquilo que eu sentia. Mas não só isso: com a leitura pude viver emoções que não passaram, ainda, pelo radar da minha vida real, mas que machucam do mesmo jeito e fazem pensar, mesmo que seja apenas uma peça de ficção.

O fio condutor da narrativa, considerada o Melhor Livro do Ano pelo Prêmio São Paulo de Literatura, é a vida de uma mulher, com passagens que vão desde seus 8 anos até os 52, e é uma prosa – muito poética – sobre perdas. A morte ronda as páginas tanto quanto o título, seja através da morte do outro ou de partes da alma da própria protagonista.

Programei lê-lo em quatro dias, mas demorei apenas uma tarde. A linguagem é fácil, tocante e nos carrega para dentro da história, um milagre que raros escritores são capazes de operar do início ao fim. Aline Bei é dessa turma. Conseguimos enxergar as cenas, os sentimentos, conseguimos prender o fôlego junto à personagem e fechar o livro com a sensação de que falta algo – mas não no livro, e sim na gente.

Era um sábado de março quando o li, transitando entre o doce da narrativa e a amarga constatação de que “todo mundo se sente confuso com essa história de parar de existir”, vinda da protagonista. E é isso mesmo: a dor de não existir só não é mais pesada do que a dor de ter que viver sabendo que tudo isso aqui tem prazo de validade.

Na dedicatória que Aline me fez, escreveu:

Que seja como um abraço o encontro com esse pássaro”.

Pois, de fato, fui abraçada no encontro. Me fez bem ler uma história densa, mas contada com delicadeza, refletir sobre perdas e danos e dirimir dúvidas que, por tantos anos, ficaram guardadas cá no peito.

Não costumo falar onde comprar livros aqui no Lite, mas, para esse, faço questão de dar o caminho das pedras: siga o Instagram da Aline Bei e aguarde a mensagem sobre como adquirir o exemplar. Com ele em mãos, te desejo o mesmo que a talentosa escritora desejou para mim: que seja como um abraço o encontro com esse pássaro.

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