Minha primeira tentativa de escrever um conto de terror

De todas as características marcantes – e são muitas – do livro Sobre a Escrita, de Stephen King, uma delas é a mentoria detalhada que o escritor promove a quem quer escrever histórias de terror. A própria experiência do autor com os assuntos da morte acabaram criando um escopo considerável para que sua imaginação corresse livre.

Cagona que sou, jamais pensei que seria capaz de andar por essas bandas. Escrever romances, coisas engraçadas ou dramáticas, tudo bem. Mas terror? Acredite: por mais que eu tenha amado A Bruxa de Blair e veja alguns filmes de terror (sempre antes do meio-dia, claro), a adrenalina da morte nunca me pareceu interessante na escrita.

Ou isso eu pensava.

Em determinado ponto do livro (página 147, para ser mais exata), King propõe um exercício que nos leva a imaginar uma cena de terror. Nunca fui de questionar os exercícios de meus professores, e essa não seria a primeira vez.

O objetivo era mostrar que o enredo pode se desenvolver por si próprio, que tudo o que a gente precisa para liberar a imaginação é um ponto de partida. Digo com convicção que essa profecia é cumprida. Comecei com duas ou três frases sem saber onde a história ia parar, e me surpreendi em ver o desfecho que eu mesma criei.

Isso é real: eu me surpreendi mesmo. Eu não sabia que os personagens fariam isso! E olha que eu sou a autora. ;p

Transcrevo o resultado final abaixo para que você tire suas conclusões, sejam elas boas ou ruins, sobre minha primeira tentativa de escrever um conto de terror. Mas fato é que trabalhar com enredo aberto, como sugere King, realmente faz a diferença.

No caso dos contos de terror, é interessante ver que nem o escritor sabe o final, fazendo com que ele também se assuste com a própria criação. Em outras palavras, personagens ganham vida de verdade quando o lápis está sobre a página. Tudo o que provém disso, ainda que não seja sucesso de público e crítica, é mágico.

Jane e Dick

Ele ainda sentia o perfume dela pela casa, mesmo tanto tempo depois que ela tivesse partido. Naquele dia, faziam exatamente dois anos que ele chegou do trabalho e encontrou seus dois filhos, Sara e Freddie, mortos sob a mesa da cozinha.

Eles tinham apenas 5 e 3 anos e jaziam no cômodo, não com a pureza do sono, mas com a brutalidade de uma morte horrível. Os braços de Sara estavam desconectados do corpo e o pescoço de Freddie pendia como uma âncora.

– Me desculpe, querido, me atrapalhei no preparo do jantar.

Ela vestia um vestido de linho perfeitamente passado e um avental branco. Seus cabelos, presos em coque, revelavam pequenos pontos de sangue perto das orelhas, mas nada que pudesse apontar que, horas mais cedo, aquela mulher criara uma verdadeira cena de guerra.

– As crianças não paravam de bagunçar com as cebolas. Mas está tudo bem agora.

Jane sorriu, um tanto aliviada. Em estado de choque, Dick se sentou na cadeira, os olhos sem vida de Freddie o encarando de cabeça para baixo.

Jane se aproximou, deu dois tapinhas leves no rosto do marido, antes de espanar as mãos no avental, espalhando seu perfume floral pelo ar, e seguir em direção ao armário de panelas.

– Vai ficar tudo bem.

Aquele cheiro.

Era exatamente o que se recordou e sentiu ao entrar na casa.

Desde que Jane foi julgada e enviada a um hospício prisional, Dick não tinha se lembrado, com tamanha vivacidade, do pior dia de sua vida.

Trancou a porta e começou a andar pelo corredor, rememorando que nenhum médico conseguiu detectar, com clareza, o gatilho daquela psicose. Mas ele tinha uma vaga ideia. Algo que jamais poderia contar para juiz algum.

Jane era uma mulher comum, talvez comum até demais. Antes de se casar, dava aulas de francês para crianças e dizia, com convicção, que não queria ter filhos. Quando ainda namoravam, Dick tentou dissuadi-la dessa ideia centena de vezes, mas Jane estava certa de sua decisão. Dick poderia ter desistido da ideia de ser pai, a opção mais difícil, ou de Jane. Mas algo naquela mulher o atraía de tal forma que ele sentiu que poderia casar-se com ela e fazê-la mudar de ideia.

Mas ela não mudou, e ele precisava ter o que queria. E, se ela não realizava seu sonho por bem, ele mudaria os termos da situação.

Aquele cheiro.

Abriu o quarto para deixar suas coisas e foi transportado ao passado. Lembrou de todas as vezes em que Jane não estava disposta a intimidades, principalmente nos dias mais propensos à gravidez. Mas Dick sempre tinha o que queria. Foram meses e meses de estupro, mas ele talvez não considerasse a situação dessa forma, ainda que houvessem roupas rasgadas e sangue nos lençóis. Ela conseguia ser arredia, o que o excitava.

As lágrimas no travesseiro passaram a ser o sonífero de todas as noites para Dick. Quando existiam, era sinal de que ele dormiria em paz.

Deu certo: em pouco menos de um ano tiveram a primeira filha, Sara. Dick teve medo de que Jane não se situasse na maternidade, o que não aconteceu. Ela amou o bebê desde o princípio.

Com Freddie foi ainda mais fácil. Ele não precisava forçar suas vontades com tanta frequência, e Jane parecia ter se acostumado. As lágrimas ainda estavam lá, mas as roupas já não estavam tão rasgadas. O sangue era escasso.

O único problema é que ela se descuidou um pouco da aparência. A única saída foi procurar outras mulheres. Mas elas não choravam ou se debatiam, e ele não conseguia dormir após o sexo.

Insônia era um estorvo, e Jane era a única solução.

– Vire-se de lado. Não quero ver sua cara.

Quanto mais se lembrava do passado, mais proeminente o perfume de Jane ficava. Dentro de sua gaveta, ao lado da arma, ele guardava uma pequena garrafa de uísque. Deu dois goles longos para tentar espantar o cheiro, mas não adiantou. Ele ainda estava lá.

Faminto, caminhou pelo corredor até a cozinha, último cômodo da casa.

A cada passo que dava, sentia o cheiro do perfume mais forte no ar. Se perguntou se sua imaginação podia ser tão fértil quando viu, pela soleira da porta, os pés de Jane usando impecáveis sapatos de salto. Dois anos depois, lá estava ela, vestindo as roupas brancas do manicômio, e sentada na cadeira onde, antes, tinha colocado os dois braços que arrancou de sua filha.

– Olá, Dick.

Dick refletiu profundamente por dois segundos e, depois, concluiu que não havia, no mundo, forma de ficar mais chocado.

– Não vai me dar um beijo, garotão?

Sua primeira reação seria pegar o telefone e ligar para a polícia, se pudesse mover um único músculo em seu corpo. Nesse momento, era impossível.

– .. quem te solt… o que você faz aqui, Jane?

– Como “o que faço aqui”, Dick? Sou sua esposa. Estou onde sempre deveria estar: do seu lado.

– Mas você estava presa. Eu não entendo.

– Vou te contar tudo durante o jantar.

Imóvel na porta da cozinha, Dick sentiu o perfume de Jane ainda mais forte, enquanto ela se aproximava para lhe dar um beijo gelado na nuca. Ainda que estivesse de salto, precisou levantar os pés para alcançar o pescoço do marido. Jane era, realmente, muito baixa.

O toque frio de seus lábios perto da orelha de Dick o acordou do transe em que estava. Ele segurou forte o braço de Jane, que não pareceu assustada. Ele se assustou.

– Vou chamar a polícia, sua lunática. Como conseguiu fugir do hospício?!

Ela respondeu, com calma:

– Aquele nunca foi o meu lugar, Dick. Você sabe.

– O que eu sei é que você matou meus filhos, sua porca maldita, e vai ficar trancada no inferno por isso, pelo resto da sua vida.

Os olhos de Dick começaram a se encher de lágrimas quando a cena dos filhos mortos voltava à sua consciência. Isso não acontecia há dois anos. Os olhos azuis de Jane não demonstravam nenhum remorso.

– Eu nunca quis ter filhos, querido. E, você sabe…

Ela se soltou com esforço do aperto de Dick, batendo os braços na túnica branca, como se estivesse espanando um avental.

– … eu sempre consigo o que quero.

A raiva dessa pequena ironia tomou todo o corpo de Dick.

– Agora, à janta! Já são sete da noite, você se atrasou hoje – Jane virou-se para ele com um sorriso casual. – Não fiz nada antes porque não queria que esfriasse. Onde estão as cebolas?

Sentindo que um impulso agora era possível, Dick correu para o quarto e abriu a gaveta do criado mudo. Teria tomado mais dois goles de uísque, não fosse a pressa. Ficaria para depois.

Pegou a arma e empunhou-a até a cozinha. A mulher estava de costas, picando cebolas, vestida em uma túnica branca de manicômio e se equilibrando em um par de saltos altos. Da porta, Dick levantou a arma na altura da cabeça da esposa.

– Isso é por Sara e Freddie.

Sem se virar, Jane perguntou:

– Isso o que, querido? E quem são essas pesso…

Ao se virar, Jane não conseguiu completar sua última frase antes de ter a testa alvejada por um tiro.

Em um segundo, Jane estava no chão, sangrando. Parecia todas as vezes em que faziam amor – só que, dessa vez, sem lágrimas. Era Dick quem tinha o rosto molhado e os pensamentos vagos quando o telefone tocou na sala.

– Senhor Richard, aqui é a Dra. Megan, do Hospital Psiquiátrico. Temo ter más notícias.

Dick quis dizer que já conhecia as más notícias, e que elas estavam se esvaindo em sangue no chão da cozinha, tudo porque aquela vaca filha da puta do outro lado da linha não teve a competência de manter sua esposa presa em um quarto, amarrada na cama para todo o sempre. Mas nada disso saiu.

– Como vocês puderam? Ela matou meus filhos…

– Filhos? O que…? Senhor Richard, me desculpe, talvez não seja uma boa hora, mas precisamos que o senhor venha até aqui. As notícias realmente não são boas.

Um silêncio de três segundos se fez na sala, enquanto Dick olhava para a arma em sua mão.

– Jane cometeu suicídio agora há pouco. Sinto muito, Sr. Richard.

Dick deixou o telefone cair da mão e ficar pendurado pelo fio.

– Senhor Richard, o senhor está aí? Richard…?

Permitiu-se mais um tempo para processar a informação, em meio ao choque. Encostou a arma em sua própria cabeça e puxou o gatilho. Nada aconteceu, exceto o cheiro de perfume frutado no ar.

Deixou a arma vazia despencar no chão e foi em direção à cozinha, de onde vinha um tilintar de sapatos de salto. Da porta, viu Jane de pé, com um furo no meio da testa, segurando cebolas.

– Ah, querido! O que você fez? – pôs a mão no furo da testa. – Vou ter dor de cabeça hoje.

Seus olhos fitaram a mesa, onde dois cadáveres de criança estavam em avançado estado de decomposição.

– Mas tudo bem. Tudo vai ficar bem. Você gosta, não é? Quando eu sofro.

Sentou-se na cadeira, o rosto molhado, a mente girando. Fitou os olhos de Freddie e percebeu que eles haviam virado uma imensa piscina de larvas.

– Eu vou encontrar as cebolas logo, logo.

Ele quis dizer que ela já estava com as cebolas nas mãos, mas nenhum raciocínio fazia sentido. Passou seus olhos pela cozinha, tentando se lembrar do que era real e o que era fruto de sua imaginação, e não conseguiu distinguir os fatos de sua própria vida.

– Vão haver lágrimas, eu prometo. Você vai dormir bem.

Jane se aproximou de seu rosto, o perfume ficando mais forte. Abaixou a cabeça, o furo em sua testa na mesma altura da testa de Dick.

– A partir de hoje você vai dormir bem todas as noites.

Deu dois tapinhas no rosto desesperado de Dick e sorriu.

– Eu nunca mais vou te deixar. Nunca.

Seus olhos azuis se apagaram, mas Dick sabia que aquilo era uma promessa a ser cumprida. Percebeu com horror que, naquela posição, Jane era bem maior que ele.

Esse post conta com ilustrações de Dan Arrows.

3 Comentários
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    Larissa Veloso at 24 de janeiro de 2019 Responder

    Amei! Fiquei pregada do início ao fim e agora fiquei com vontade de escrever minha própria história de terror, rs

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      Lais Menini at 24 de janeiro de 2019 Responder

      Escreve e me mostra!! Quero muito!
      E, se quiser, a gente publica aqui também! 😉

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