Como Dom Quixote foi parar em O Poço?

Nota1: esse texto contém spoilers do filme O Poço. Se ainda não assistiu, mas pretende, não avance na leitura.

Nota2: não coloquei a paginação das citações de Dom Quixote pois minha versão é a da Apple livros, que muda as páginas de acordo com o dispositivo (celular, computador, tablet). Se você quiser consultar uma das citações em específico, deixe-a nos comentários e eu aviso em qual capítulo ela se encontra.

Nota3: a análise abaixo foi feita de acordo com minhas próprias interpretações do filme e do livro e, portanto, não tem teor de pesquisa. 

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Goreng queria parar de fumar e ler Dom Quixote.

Segundo o próprio nos conta, foi para isso que se candidatou a uma “vaga” em O Poço, a prisão vertical distópica do filme de mesmo nome. Quando avisado de que poderia levar um objeto para seus seis meses de confinamento, Goreng escolheu um livro: Dom Quixote de La Mancha, escrito por Miguel de Cervantes e publicado pela primeira vez em 1605.

Mesmo quem não leu Dom Quixote pode ter uma ideia de quem é o famoso cavaleiro da triste figura. 

Alonso Quijano é um nobre que deixa tudo para trás para viver o que lê nos livros de cavalaria, com a intenção de fazer bem à sua comunidade: a riqueza, a vasta biblioteca e até o próprio nome. Quando sai em busca de aventuras, adota o nome Quixote. Seu sobrenome é de onde ele vem: La Mancha. 

Assim o é com Goreng, Trimagasi, Imoguiri, Miharu e todos os outros personagens de O Poço. Para entrar na narrativa – ou aventura –, todos se despiram de seus próprios nomes. Sabemos disso por Trimagasi, que nos alerta, logo no início da trama, que os nomes, ali, não são os que os presos carregam no RG.

Conforme os dias no poço vão passando, e os obstáculos se acumulam para o protagonista, a essência de Dom Quixote vai se tornando cada vez mais enraizada na do personagem do filme.

De cara já conseguimos ver que, fisicamente, Goreng se parece com o que vemos nas famosas ilustrações de Quixote. Uma das descrições que Cervantes nos dá, ainda no prólogo, é de alguém na faixa dos 50 anos, “rijo de compleição, seco de carnes, enxuto de rosto, madrugador e amigo da caça”. Embora Goreng não esteja nessa faixa etária, consigo imaginá-lo nas demais características.

Quando Goreng começa a transitar pelo poço, mudando de plataformas, o idealismo de sua figura se aflora. Ele absorve algum conhecimento de cada companheiro ou companheira que encontra no poço e vai, aos poucos, formando sua própria personalidade. 

Assim como Quixote, Goreng nos permite o encontro com alguns adjetivos que cabem no guarda-chuva do “quixotesco”: ingenuidade, ideação, senso de bondade e, claro, a loucura. Estamos falando, sem ressalvas, de dois personagens leitores que querem reproduzir, na vida real, o que veem nos livros. 

O ápice de semelhanças entre as obras, que me fez acreditar que Goreng realmente queria se tornar Dom Quixote, muito mais do que apenas lê-lo, ocorre quando ele está no nível 6; até então, o mais alto de sua experiência.

Nele, encontra Baharat, o mais perto de um “Sancho Pança” que vamos encontrar no Poço, embora bastante secundário. Nesse momento, a “insanidade” de Goreng dá origem à improvável dupla – os loucos extasiados, como diz. Entendo, assim, que a loucura toma as rédeas de seu idealismo, e ele, junto ao companheiro, tenta estabelecer a ordem do que acha justo, mesmo que, para isso, tenha que atacar aqueles que busca defender.

Como o final de O Poço não é um final, deixando a obra aberta a inúmeras interpretações, uma delas é a de que, quando chegamos a esse ponto da narrativa, ele já está morto. De uma forma ou de outra, é interessante ver que a “profecia” de Trimagasi se cumpriu: morto ou tentando mudar o sistema, Goreng era, de fato, o tipo de pessoa que não aguentaria estar nos andares superiores. 

“E como ao nosso aventureiro tudo quanto pensava, via ou imaginava lhe parecia real (…)”.

E, por fim, ligo o desfecho de Goreng a Quixote através da resignação. Em vez de ficar seis meses no poço, parar de fumar, ler seu livro e receber um certificado, Goreng se entrega a seu final, qualquer que seja ele, sem ressalvas. Quando some na escuridão abaixo do 333, acompanhado de suas alucinações, nosso protagonista está em pedaços, tanto físicos quanto emocionais.

Uma coisa que não vemos, porém, é seu reclame dessa condição. Nem quando tem a carne cortada por Trimagasi, nem quando entra em batalha corporal pela vida (ou vingança) de Miharu, sequer quando come as larvas dos mortos com quem divide a cela, Goreng não se põe a lamentar. Ele é, como Quixote, pura resignação e aceitação de seu destino. 

Nosso Dom tem uma explicação muito clara sobre isso:

Não é uma questão, portanto, de como vamos enxergar nossa participação no livro da vida; mas, talvez, seja uma questão de o que nos convencerá do nosso papel.

Onde está o fim do poço?

“(…) louvava no autor aquele acabar o seu livro com a promessa daquela inacabável aventura; e muitas vezes lhe veio desejo de pegar na pena, e finalizar ele a coisa ao pé da letra, como ali se promete e sem dúvida alguma o fizera”. 

Quando assisto a um filme espero um desfecho. Sempre foi assim. Mas nem sempre é o que me entregam. Acho que a maioria das pessoas que assistiu a O Poço concorda que temos, aqui, uma narrativa sem desfecho. 

O Poço fala de capitalismo? Desigualdade social? Cultura versus violência? Tudo isso – e muito mais – cabe no pacote de analogias e metáforas que encontramos no filme. E, para qualquer problema que acreditemos estar retratado na tela, é desejo de todos nós encontrar a solução. Mas essa não há; a história nos descreve o problema, mas não nos aponta saída, conclusão ou sequer o destino ou teor de sua mensagem. 

A aventura é inacabável e, portanto, só nos resta vivê-la, quaisquer que sejam os elementos dispostos pelo caminho.

Em Dom Quixote há, ainda nos primeiros capítulos, uma passagem até engraçada que me fez pensar bastante tanto sobre o excesso de paralelos do filme quanto minha (talvez nossa?) eterna necessidade de sempre ter o autor/roteirista/diretor nos explicando tintim por tintim do que estamos vendo.

No livro, um vendeiro pergunta a Dom Quixote onde está o dinheiro, e o cavaleiro afirma que não trouxe. O personagem, então, se surpreende:

Ou seja: se levar dinheiro e camisas limpas é tão óbvio que os autores de livros de cavalaria não especificaram isso em suas narrativas, deixando Quixote “perdido” em suas prioridades, quais são as obviedades das entrelinhas que estamos deixando passar?

O próprio diretor de O Poço diz que deixa o thriller em aberto a interpretação e que, apesar de fazer uma autocrítica social, principalmente sobre os pilares do capitalismo, ele não mostra nenhuma solução ao problema.

Isso não quer dizer que não possamos ler nas entrelinhas e tentar tirar da narrativa qualquer conclusão que queiramos. Afinal, os elementos estão todos lá…

“Muitos anos há que esse Miguel Cervantes é meu amigo; e sei que é o mais versado em desdita que em versos. O seu livro alguma coisa tem de boa invenção; alguma coisa promete, mas nada conclui; é necessário esperar pela segunda parte que ele já anunciou. Talvez com a emenda alcance em cheio a misericórdia que se lhe nega”. 

A prisão e sua razão de ser

Ainda no início da narrativa, Trimagasi, preso por atirar uma televisão pela janela e matar um imigrante, nos dá uma informação interessante. Ele diz que lhe foi feita uma proposta: a ala psiquiátrica ou um ano no poço, embora não tenham lhe prometido nenhum certificado. 

Imoguiri, funcionária da administração, nos conta que foi para lá quando descobriu que perdeu a luta contra o câncer e queria fazer algo pelos outros antes de morrer. Nas atitudes dela, vemos se tratar da implementação de uma nova maneira de pensar, uma “solidariedade espontânea”. 

Não sabemos como outros personagens foram parar lá, e nos lembramos que os objetivos de Goreng são:

– parar de fumar

– ler Dom Quixote

– ganhar um certificado

Vamos lá. Depois de avançar em Dom Quixote, ficar em abstinência de nicotina, se alimentar mal, viver em condições sub-humanas, cometer assassinatos e se entregar à loucura que o próprio companheiro de cela o propõe – comer ou ser comido – fica a pergunta: até que ponto o poço não é o lugar onde se reúnem os loucos, os sem juízo? 

Até que ponto a prisão também não é uma ala psiquiátrica?

Todos os personagens passam, em certo aspecto, por sua própria insanidade, até mesmo o sábio. Ele age com proselitismo ao catequizar a Quixote e “Pança” os elementos da busca pela mensagem – educação antes de revolução, em suas palavras –, mas o que ele diz, com tanta propriedade, sequer pode salvá-lo. Senão, ele não estaria por ali.

Miharu del Toboso

“Assim, limpas as suas armas, posto o nome ao rocim e confirmando-se a si próprio, julgou-se inteirado de que nada mais lhe faltava, senão buscar uma dama de quem se enamorar”. 

Quando Goreng desce do nível 6, ele tem todos os elementos quixotescos para tanto: avançado na leitura, encontra um companheiro que se compromete a acompanhá-lo na perigosa aventura em troca de uma clara recompensa (Sancho Pança quer uma propriedade, Baharat quer sair dessa propriedade), o ideal de estar fazendo a coisa certa e seus sentimentos por Miharu, que o fazem colocar a própria vida em risco quando vê que a dela se esvai nas profundezas do poço.

O afeto de Goreng por Miharu não é casual; o protagonista precisa disso para se tornar Quixote. Afinal, ter uma senhora a merecer é, para o fidalgo do livro – leitor de tantos outros –, condição sine qua non para se fazer cavaleiro andante.

Ele mesmo diz:

“(…) não pode existir cavaleiro andante sem dama, porque tão próprio e natural assenta nos que o são serem enamorados, como no céu o ter estrelas; e onde com efeito se viu na história um cavaleiro andante sem amores?”.

E, ainda assim, ele sabe, como Quixote, que qualquer sentimento que nutra pela mulher dita “amada” é platônico. A ilusão do enamorar não serve para se cumprir, e sim para carregar o cavaleiro adiante. 

No livro, Alonso Quijano literalmente escolhe uma amada para ser o norte de sua aventura. Aí, Aldonça Lourenço, uma pessoa real de sua comunidade, vira Dulcineia del Toboso, a musa inspiradora do cavaleiro andante. Então, temos, por aí, que nem o próprio amor é a realidade; ele serve para guiar o caminho. 

Assim, a cena em que Goreng sonha estar fazendo amor com Miharu serve para ilustrar essa passagem de pessoa comum para cavaleiro andante. Ao ter uma senhora a merecer, mesmo sem que ela saiba (ou, sequer, exista), a aventura está “autorizada”. 

Quem levaria um livro para O Poço?

Essa é a pergunta que Imoguri faz. Pessoas levam armas, bestas, cachorros e até dinheiro para o poço… mas quem levaria um livro?

Voltemos ao início, quando Goreng conta que foi para a prisão para parar de fumar e ler Dom Quixote, que é um livro longo, e sair dali com um certificado. É preciso tempo para consumi-lo, dada sua linguagem e importância para a literatura espanhola e, também, mundial. 

Dom Quixote é um livro que até pretende ser linear, mas deixa o leitor perdido pelo caminho, inúmeras vezes. Para chegar o mais próximo possível de entendê-lo, Cervantes nos demanda um bom período (e isolamento) para alimentar a concentração.

Ademais, esse livro também pode ser tomado como uma arma dentro da narrativa, já que Goreng, de certa forma, quer ser Dom Quixote, trazendo à tona o embate entre cultura e violência. Esse também é um debate atualíssimo em todo o mundo, principalmente nos que estão, em 2020, sob a batuta de governos de esquerda.

Vale lembrar que, em Dom Quixote, o livro é tido como ameaça. A família e os empregos do fidalgo se põem a queimar todos os seus livros, incluso os que não têm a ver com cavalaria, por acreditarem que qualquer leitura faz tão mal que tira de juízo um nobre de vida plena. 

Quando a pessoa se dispõe a ler um livro ela está de braços abertos para receber aquela mensagem. Quantas vezes não dizemos que saímos de uma leitura pessoas melhores, e tantas outras que uma obra não nos agregou nada?

Para Goreng, ele não só recebeu a mensagem como, também, se tornou a mensagem. Se tornou Quixote. No livro, Quijano é descrito a partir de: 

Vemos essa decorrência conforme os meses se passam no poço e Goreng, consequentemente, avança na leitura. Ambos querem se tornar cavaleiros para “poder, como se deve, ir por todas as quatro partes do mundo buscar aventuras em proveito dos necessitados”. 

E por que Dom Quixote? Por que Cervantes?

Para fazer uma crítica social sobre a desigualdade, a escolha do livro é cirúrgica, pois é a ideia de ajudar os necessitados que faz com que Quixote renuncie à nobreza, a seu nome, para “salvar” quem precisa ser salvo e merecer o amor de sua senhora.

Temos muitos livros que poderiam ser levados ao poço por um “amante de livros”, mas talvez nenhum deles contasse com a densidade de crítica social e política que Dom Quixote contém.

(Um parêntese: tratamos um filme espanhol que aborda o maior clássico literário espanhol de todos os tempos.)

Estes são alguns dos paralelos que consegui fazer entre Dom Quixote e O Poço, mas sei que todas podem estar equivocadas ou, pior ainda, não arranharem a superfície das metáforas e referências de Cervantes no filme. Por isso, conto com seus insights para avançarmos em análises que, ainda que não façam sentido, são bem divertidas. ;p 

Notas finais

Se você gostou dessa análise, de O Poço, ou se acha interessante a narrativa que aborda dilema moral, veja os materiais abaixo.

Conto – Aqueles que se afastam de Omelas

Leia o conto Aqueles que se afastam de Omelas, de Ursula Le Guin. Me lembrei bastante desse texto após terminar O Poço e acredito que ele também nos ajuda a refletir sobre onde estamos no poço social em que vivemos.

Clique aqui para ler o conto.

Filme – Expresso do amanhã

Do mesmo diretor de Parasita, Expresso do amanhã (2013) é um filme que aborda a desigualdade em sistemas distópicos. Nesse, ao invés de uma prisão vertical, extratos sociais são dispostos na horizontal, em um trem que não pode parar. Quanto mais longe do primeiro vagão, mais precária é a vida dos ocupantes da engrenagem.

Live – Elementos de reflexão em O Poço

Participei da live do SouBH sobre o tema no dia 26 de abril com Carol Braga, Felipe Roque e moderação de Pat Lisboa. Se você não teve oportunidade de ver ao vivo, não se desespere: clique aqui e veja a gravação na íntegra.

Onde comprar Dom Quixote – Box completo

Na Amazon: R$228,00 (melhor preço! Clique aqui para comprar)

No Submarino: R$230

Na Leitura: fora de estoque em 27/04/20

Se você tem dispositivos Apple, eu comprei a versão de 1800 páginas por R$3,99 para ler no celular. É cansativo, mas é, literalmente, quase de graça.

2 Comentários
  1. avatar image
    Graziela at 27 de abril de 2020 Responder

    Excelente texto. Ótima análise comparativa ! De perder o juízo! ,:-)

  2. avatar image
    Eliane Lima at 28 de abril de 2020 Responder

    após assistir o filme, tive duvidas sobre o real sentido daquela prisao, lendo agora o seu texto e assistindo a live, pude assimilar melhor. obrigada, você me mostrou pela comparação filme e livro, uma visão nova do horror que senti ao ver só o filme.

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