After e a pulsão sexual

Diversas vezes eu trouxe para esta coluna o que Hardin desperta em Tessa em vários sentidos – inclusive o sexual. Mas nunca me debrucei com afinco ao significado do que é este ato para ele. Embora já tenha vivido variadas experiências com muitas mulheres, com Tessa há uma diferenciação clara, uma ressignificação e um divisor de águas. Não é só o amor que ela desperta nele: o sentido e o gozo que o encontro com ela proporcionam acrescentam um ingrediente fundamental nesta ‘química’.

Comecemos pelo início da história de Hardin.

A primeira cena sexual que ele presencia na vida é enquanto criança, durante um evento traumático onde ele assiste ao estupro da própria mãe, e que trará um significante importante pra ele: o sexo é um ato de violência.

Naquele momento, a relação sexual é desvelada para ele como algo sem prazer, que marca claramente a ausência do pai e a indiferença da mãe sobre o assunto, por nunca ter discutido e por ter mantido verdade ocultas, como tratei no texto Trish, o não dito e a história construída por atos. Se fosse resumir em dois sentidos, o sexo, para Hardin, pela primeira vez na vida, significou violência e desamparo parental.

Mais pra frente, como tratei no texto Natalie e a saída de Hardin para o passado traumático, o sexo vai aparecer para ele como uma punição pela vida. Já que fora “punido” pelo ato sexual, é neste sentido que irá devolvê-lo ao mundo. Claro que essa é uma saída inconsciente, até porque, enquanto “punia” o mundo pela sua visão distorcida de prazer, era a si mesmo que ele estava punindo.

Hardin estabelece várias parcerias que, mais tarde, confessa não necessariamente enquadrarem-se em um prazer da libido sexual em si. Trata-se de um alívio momentâneo, onde ele tentava circundar aquele assunto com que esteve sempre às voltas, mesclando um destino de alívio, de pertencimento social, mas também de angústia… até chegar em Tessa.

O mistério da virgindade o atraiu por algum motivo, e não tão somente o da aposta. Hardin se coloca neste jogo para se “resguardar” de qualquer possível encantamento pelo amor ou até para não perder a sua posição social frente aos outros, dada a sua insegurança.

Pela primeira vez ele toca uma mulher sem esperar, em troca, realizar-se no prazer. A primeira cena entre eles (a do lago) é, praticamente, Hardin desenhando o prazer da mulher, nos dando a sensação de que era a primeira vez em que ele via aquilo. O prazer era todo em assistir uma mulher gozar frente a um instinto que ele dominava completamente.

Tessa é a primeira experiência que demonstra a ele que não é preciso punir o mundo com o sexo. Repetidas vezes ele diz que um dos principais fatos de a querer tanto é porque nunca tinha dormido com outros homens. Por isso, a ideia de que a aproximação masculina a ela é, para ele, um pavor; como se quisessem tirar dele o único prazer sexual que só ele obteve.

E não para por aí

Outro ponto fundamental, para Hardin, sobre o fato de Tessa nunca ter sido tocada, é a relação que ele estabelece dela a uma posição que confronta a imagem “manchada” da mãe dele, na infância, de vários homens possuírem uma “mulher inocente”. Esse fator explica a forma paranoica com que Hardin lida com a possibilidade de Tessa ter outros parceiros que não saberiam preservar a sua inocência. Talvez, por isso, o ciúme excessivo – em especial por Zed, que, literalmente, coloca a sexualidade dela em jogo.

Em alguns momentos Hardin parece querer, involuntariamente, punir Tessa, como se não fosse justo que alguém inocente se entregue a um homem como ele. Por isso, se sente culpado por tirar a inocência sexual de uma mulher (como experimentara no passado), ao mesmo tempo em que a deseja. Essa mola do desejo, que vai e volta sem cessar, atua em uma relação que o prazer traz culpa e revela a angústia do amor e da possibilidade de perda que, antes de Tessa, ele nem imaginava existir. Afinal, Hardin não tinha o que perder.

Por outro lado, não há como falar sobre a sexualidade de Hardin sem falar sobre nós, leitores; não é este um dos principais fatores de interesse pelo livro?

A pulsão sexual da leitura é o que dividimos com Tessa. Entre as quatro paredes de um livro, a mulher experimenta um sexo sem pudor através de algo que é aceito socialmente (a leitura). Isso diz, também, sobre discussões femininas, principalmente na juventude, que (ainda) não são tão abertas quanto para os homens.

Ao meu ver, After cumpre, dentre vários outros, o papel que quebrar esse tabu. Por mais doentio que Hardin possa ter parecido no relacionamento com Tessa, ele é quem a ensina que ela também pode (e deve) ter prazer. Ele não aceita se satisfazer sozinho, colocando-a para realizar as suas fantasias, o que muitas vezes é difícil ocorrer socialmente, como vejo nos relatos de consultório e como vemos na vida.

Mesmo tendo ciúme, ele é quem acaba fazendo dela mulher, mostrando a ela que deve ser desejada por um homem. Ele só não admite perder isso que ele nunca tinha tido até então, mas não podemos negar que ninguém na vida nunca a valorizou como mulher, que deseja sexualmente, como ele fez.

A questão do insuportável e do ciúme é explicada em vários momentos da vida, como tentei fazer neste texto. Entretanto, não podemos deixar de assumir que tanto Anna Todd quanto o seu personagem Hardin cumprem o lugar fundamental de trazer à tona questões sexuais naturalizando-as ao universo feminino. E isso, sim, é um ponto super a favor desta obra.

Sobre a autora

Jornalista por profissão há dez anos e psicóloga há quase três. Pesquisadora da área de Psicanálise e Cultura Digital, atua na clínica com jovens e adolescentes. No seu aniversário de 31 anos ganhou o livro After de uns amigos psicanalistas. Em um mês já tinha lido a série completa. E agora é só o Depois.

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