Reflexões de História de quem foge e de quem fica

Por Viviane Fontes
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No terceiro volume da série napolitana de Elena Ferrante, História de quem foge e de quem fica, Lenu começa a narração com um pulo no tempo, anos depois do desfecho do segundo livro

Ela narra o retorno à Nápoles, quando reencontra Lila, ambas já mulheres maduras e com marcas do tempo. No encontro ocorrem revelações sobre o que passaram nos anos que estiveram distantes e sobre alguns dos antigos amigos.

A partir daí,  em retrospectiva, Lenu retoma as lembranças desde o dia do lançamento do seu livro até o reencontro com Nino Sarratore, quando estava com 25 anos.

Literatura e demandas femininas

Já no começo das lembranças de Lenu vem à tona os sentimentos antagônicos que, ao que parece, fazem parte da sua vida. Momentos em que se sente dona do mundo, segura e madura, outros em que se sente inferior aos seus pares… Situações em que, não sabendo como lidar, tenta demonstrar sentimentos opostos aos que realmente deseja. 

Os mesmos conflitos sociais, familiares e profissionais aparecem na questão sexual e em relação aos homens que a cercam. Lenu questiona-se sobre os reais motivos que os fazem procurá-la ou rejeitá-la – e mostra certa frustração, não sendo desejada por quem queria e procurada por homens a que rejeitava.

Sua pergunta para si mesma é: o que a levava a tais situações?  

Através da discussão sobre o livro que escreveu, Lenu também nos mostra questões relacionadas às lutas feministas. Ela relata como o sexo, abordado em seu trabalho, toma conta dos debates de maneira maniqueísta, sempre reduzindo as conversas ao tema, deixando de lado outros aspectos da obra. 

Porém, mesmo que outros quisessem reduzir seu trabalho apenas à obscenidade, há, aí, a questão do porquê o tema sexo, escrito por uma mulher, é taxado como imoralidade, mas tratado de maneira natural, sem polêmica, em obras escritas por homens. 

Elena Ferrante usa a literatura, e também a presença de mulheres nos movimentos políticos e sociais, para mostrar a inserção da figura fermina nos ambientes e debates até então dominados por homens.  

História de quem foge e de quem fica aborda dilema

Outro tema do universo feminino abordado na série napolitana, e retomado em História de quem foge e de quem fica, é a gravidez. O incômodo de gestar outra vida dentro de si, as dores e transformações do corpo, a obrigação de abrir mão dos seus desejos e sonhos para cuidar de outra pessoa e o desejo de não ser mãe aparecem na trama.

Na obra, a gravidez também é discutida como estratégia para manter um relacionamento e conquistar bens materiais e, na ótica do homem, como obrigação da natureza feminina para perpetuar o DNA do pai. 

As reflexões continuam após o nascimento da criança, com as mudanças na vida da mulher. Muitas vezes ela é obrigada a abdicar de sonhos, carreira e até da própria sexualidade. Ferrante destaca como todo o processo é difícil e bem diferente de uma visão romântica repetida por diversas mulheres.

Fica a reflexão: conceber outra vida é de fato um privilégio ou um fardo? 

Reencontro das amigas

Até a página 96 de História de quem foge e de quem fica, Lenu fala apenas de si, embora apareçam algumas lembranças de Lila. O encontro entre as duas só acontece mais tarde, quando Lila reaparece mal cuidada e, ao que parece, em crise existencial. 

Daí em diante, Lenu conta como foi a vida de Lila até aquele encontro. Assim como ela, a amiga também se envolveu com política – e não no campo das teorias, como Lenu, mas na prática. Ela também se questionava diante dos desafios pessoais e profissionais. Lula tinha dúvidas em como se posicionar diante de situações em que as mulheres são subjugadas e ameaçadas por homens diante de assédios morais e sexuais. 

No breve período em que esteve em Nápoles, antes de se casar, Lenu ajudou a amiga, que não se encontrava bem. Reencontrou outros amigos da infância e descobriu segredos sobre eles, como viviam e o que pensavam sobre os companheiros do passado, inclusive sobre ela e Lila.

Política, luta de classes e violência? Tem.

Os relatos sobre a política daquela época na Itália nos dão uma noção do clima tenso no país. A eterna briga de classes é contada em detalhes por Lenu em História de quem vai e quem fica.

O confronto entre patrões e empregados, incluindo a Máfia, dentro do contexto napolitano e no mundo das duas amigas desde o tempo em que eram crianças, é representada pelos Solara. Associados às figuras deles estão os conceitos de crime, violência, poder e dinheiro.

Foram muitos os danos colaterais causados por essa luta. A repressão policial e a ação de grupos armados atingiram muitas pessoas próximas à Lenu e Lila. Marcas profundas, físicas e emocionais, além de assassinatos, foram registradas naqueles anos no final da década de 1960 e nos anos 1970. 

Relações femininas: força e rivalidade

História de quem foge e de quem fica me encanta por mostrar como essas amigas tão diferentes são igualmente fortes e poderosas. A potencialidade de cada uma se torna maior quando estão conectadas. Porém, a obra deixa explícito como Lila desperta nas pessoas os melhores e piores sentimentos, às vezes simultaneamente. 

A transformação de Lenu, em particular, mostra como muitas mulheres se diminuem por não acreditarem em si mesmas, em como são importantes. A autoestima e a confiança das pessoas próximas são aliadas para deixar aflorar todas as capacidades que, historicamente, são oprimidas.    

Lenu demonstra comportamentos diferentes, dependendo de onde se encontra. Em meio à família e amigos da infância, se sente inadequada, vazia, confusa, diminuída, violentada, sufocada. Quando se afasta de Nápoles, entre os amigos da família do namorado, se sente valorizada, importante, relevante.  

Um olhar para dentro sem medo de se encontrar

Em História de quem foge e de quem fica, Ferrante também discorre sobre vícios humanos que quase sempre nos esforçamos para camuflar: amor, ódio, submissão, devoção, desejo, violência. Neste livro, ela se entrega mais a esses temas, sem pressa, levando o leitor a várias reflexões. 

A leitura me causa cansaço, em especial nos diálogos entre Lenu e Lila, e quando Elena descreve em detalhes os acontecimentos da vida de Raffaella. Como já comentei noutro texto, é a personagem que causa incômodo. Para mim, ela é a mensageira do caos. 

Aí me pergunto se, talvez, não seja exatamente isso que Ferrante quer provocar nos leitores através de Lila: um despertar. Talvez ela queira fazer com que reviremos tudo aquilo que tentamos esconder de nós mesmo. Por isso, seus livros são uma maneira de nos estimular a deixar de olhar para o mundo exterior, e o que nos rodeia, e passar a olhar para dentro.

Em muitos trechos dessa série me vi diante da minha psicóloga em alguma sessão em que preferia não estar, onde queria me calar e fugir. 

Mas, além de todas as questões sociais, sexuais e emocionais, História de quem foge e de quem fica mostra como, mesmo ficando em Nápoles, Lila não se prende, é livre. E Lenu, com tantos anos dedicados aos estudos, tendo a oportunidade de conhecer outras cidades e países, em algumas situações ainda parece uma mulher provinciana. 

Agora falta pouco para descobrir, ou não, os motivos que levaram Lila a sumir sem deixar rastro. O que Elena Ferrante guarda para o leitor em História da menina perdida, quarto e último livro da série? Lenu vai se estabelecer como uma autora de sucesso e viver seu verdadeiro amor? Por que Lila, depois de anos, finalmente resolve sumir? Lenu vai passar a limpo a amizade com Lila e dizer tudo que sente? 

São muitas questões em aberto e, imagino, muitas surpresas e possibilidades para as amigas – e todos que as cercam. 

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