Quando encontrei Danilo, há nove anos, ele era um menino bom. Intenções interessantes, olhos sedutores e uma biblioteca abastada. Pacote completo do bom marido. Quando nos casamos, dividimos as estantes com uma condição: sem marcar livros. Os que ele trouxe – e os que compramos para serem lidos pelos dois – não podem ter um risquinho sequer.
O motivo: eu rabisco todos os meus livros.
Todos.
Gostei de um raciocínio, como gostei em Sobre a escrita, do Stephen King? Escrevo minhas declarações de amor NO LIVRO.
Não gostei, como no caso de Seja FODA? Todas as minhas revoltas estão naquelas páginas.
A frase vale ficar marcada? Destaco. Grifo.
Faço corações em cima de palavras. Dou high five mental no autor, escrevendo “é isso aí!” no espacinho entre a palavra e a margem.
Essa sou eu, com duas ótimas justificativas para o meu comportamento.
A primeira é que o livro, para mim, não é uma via de mão única. É comunicação. O autor teve o direito de escrever o que ele quis naquelas páginas? Pois eu também tenho. O papel anseia por essa aproximação. Ele quer ser devorado, e não apenas pelos olhos.
A segunda tem a ver com a morte.
Espero morrer só com 102 anos e, até lá, rabiscar muitos livros, para deixar para trás as memórias de quem eu fui e do que gostei.
Pra mim, faz todo sentido.
No fim de 2018, passava o fim de semana na casa dos meus pais quando minha mãe me viu transcrevendo para o computador as partes grifadas do livro A sutil arte de ligar o f*da-se. Sim, tenho um arquivo no computador só dos destaques dos livros que leio. Ao ver a cena, ela pegou um livro dela, da estante dela, e mostrou que faz exatamente o mesmo.
O livro que ela pegou tinha tudo a ver com o modo como ela me criou e as coisas que me dizia. Fiquei feliz por ver que, de certa forma, ela imortalizou o que aprendeu nas páginas de um livro que meus netos, bisnetos e tataranetos irão ver muito depois que ela – e eu, e meus filhos – deixar esse mundo.
Vejo poesia nas coisas que a gente deixa para trás e quero, é claro, que as pessoas vejam um grifo meu em livro e pensem: “nossa, isso é tão Laís!”, ou até mesmo “ah, então foi daqui que ela tirou aquele pensamento absurdo”.
Coisas desse tipo.
Portanto, se você me pergunta se marcar livros é um mau hábito, te digo que não. Mas, se você perguntar a mesma coisa ao Danilo, ele vai dizer que sim. Ele fica apavorado só de pensar que eu posso grifar um de seus Carl Sagan, José Saramago ou Michael Ende. Toda vez que pego um livro dele emprestado, ele fala:
– Vê se não vai rabiscar, hein?
E não rabisco. Respeito. O livro é dele, afinal.
Transformar a marcação de livro em hábito ou não depende muito de como você enxerga o seu patrimônio. Se for com o preciosismo de ter uma biblioteca que pareça intocada, com cada livro sendo novo a cada nova leitura, você não deve marcar suas páginas.
Marcar envelhece o livro.
Por outro lado, marcar imortaliza o leitor. Mostra que a pessoa esteve ali, leu, se deixou tocar por alguma coisa – boa ou ruim – e está deixando o sentimento para os próximos leitores da peça em questão.
A sutil arte de marcar livros
No post sobre o que comer enquanto lê, minha amiga Lari Reis trouxe uma reflexão interessante: o quanto o leitor fica exposto ao mostrar aos outros o que lhe tocou.
Afinal, uma marcação em livro não sai nunca mais, a menos que tenha sido feita de lápis (erro de principiante. Use uma caneta. Se você for como eu, use uma caneta que combine com a capa. Não é porque vamos bagunçar o livro que precisamos deixá-lo feio. – Não, não acredito que disse isso. Seguindo.)
Esse é um efeito colateral de marcar páginas. Quem vier depois de você vai te ver nu na montanha-russa de emoções que o livro te proporcionou.
Mais uma vez, isso é uma questão de prioridades. A minha não é essa. Eu quero mais é que as pessoas se lembrem do que me emocionou, principalmente quando eu não estiver mais aqui para contar essas histórias. O próprio Literama é meu espólio para o mundo… vou me preocupar por ter aberto meu coração nos livros que li? Sem chance.
Não vou julgar quem pensa o contrário. Sermos diferentes é a beleza da coisa toda.
Mas vou te contar um segredo e, por favor, não conte ao Danilo que te contei, já que isso pode bagunçar meu casamento.
Se sua prioridade for recordar as coisas que você lê sem marcar os livros, entre a palavra e a margem, faça, a lápis uma marcação bem levinha onde a frase em questão começa. Quando terminar de ler o livro, abra um documento no computador, transcreva todas as partes que foram levemente marcadas e apague o tracinho de lápis. Pronto. Você não deixou suas pegadas por aí (é um traço leve, gente. Não desça a mão no lápis) e, ainda, teve a oportunidade de guardar todos os trechos que te fizeram sentir algo a mais.
Quero terminar esse texto com uma nota pessoal: o dia em que eu lançar meus livros, se ninguém rabiscá-los, ficarei profundamente ofendida.
Lembre-se disso e escolha: marcar de caneta, de lápis, de lápis com tracinho, fazer corações, escrever no espaço em branco como eu fui idiota, ou como você se sentiu quando leu tal frase, eu não me importo. Só não deixe de conversar com meu livro quando ele estiver na sua mão, por favor.
Nenhuma leitura é uma via de mão única. Se a pessoa que a trouxe à vida fala sozinha, não conquista absolutamente nada.
Antes de sair…
… vem conversar sobre o assunto também no Instagram! Se quiser marcar (mesmo que virtualmente) o meu primeiro romance, ele está disponível gratuitamente no Wattpad.
Não sabe o que é Wattpad? Aqui tem a explicação e o tutorial. 🙂
Fiquei tão feliz com este post, Lila! Li sorrindo do começo ao fim 🙂
Ainda existem dois livros, minhas bíblias, cujas marcações eu espero manter pra mim até que eu morra. Na verdade, acho que o apego é maior com esses livros em si do que com as anotações.
Adorei a ideia de que “marcar imortaliza o leitor”. Levarei pra vida!
Sem dúvida essa foi a coisa mais linda e incrível que já li nos últimos tempos. Fiquei emocionado. Eu tinha pavor de rabiscar livros, mas passei a ver que tem coisas que realmente merecem ser marcadas (inclusive, acabei de fazer isso com um do Saramago que tô lendo). Obrigado pelo texto.
Oi, Alan! Eu é que agradeço sua participação. Sigo por aqui marcando livros e publicando algumas citações lá no @literamaoficial! Conto com suas sugestões de leitura para marcar sempre mais. 😉
Um abraço!
Nunca marco meus livros. Gosto de mante-los novinhos. Quero que meus filhos ou quem mais os leia não se sinta influenciados com a minha percepção e tenham suas proprias partes em destaque. Não preciso marcar frases para que algumas me façam pensar mais que outras e chamem minha atenção. Entretanto ultimamente tenho encontrado trechos de muito importantes reflexões para mim e fiquei tentada a marcar. Ler seu texto me convenceu. Tenho isso de deixar registrado quem sou. Começarei a marcar. Meus filhos q comprem seus próprios livros e marquem tb com suas proprias conclusões. Podemos até comparar e debater.
Que delícia ver seu comentário, Aline! Eu sempre acredito que deixamos um pouco da gente nos livros, e eles vivem para sempre! Um beijo!
Que texto bacana! Estou com dois livros que realmente os tenho como um presente. São tão ricos pra mim que tenho vontade de marca-los todo, mas não tenho coragem. Por isso pesquisando caí em seu texto a adorei. Parabéns e Abraço.
Amei o texto. Obrigada por pública-lo. Estava na duvidade entre marca ou não meus livros, e seu texto foi esclarecedor, um “divisor de águas”. Muito obrigada mesmo. Ainda estou um pouco, digamos, receosa… Mas irei com medo mesmo!Um Xeru!
Não tenha medo de deixar suas marcas, Millena! ;p
Pode grifar os livros com dó.
Resolvi ler pois meu marido acredita que anarquiso os livros…disse q nao tem como ninguem ler depois…ora é minha maneira de conversar com qyem tá me contando a história.
Hahahaha exatamente! Fala com ele o que eu falo com o meu: daqui a muitos anos, quando eu morrer, ele vai pegar os livros que li e ver exatamente o que me tocou em todas as narrativas. Se eu não marcar, ele nunca vai saber. ;p
Ri demais com seu texto, li centenas de livros e nunca fiz uma única marcação, então comprei um Kindle e saí destacando todas as frases que me marcavam.
Quando voltei ao livro físico (duas semanas atrás) senti uma tremenda necessidade de continuar esse hábito, mas e a coragem? Seu texto me inspirou a comprar uma caixa de lápis de cores em tons pastéis e começar a deixar minha pegada literária. Seríamos nós o ‘príncipe mestiço’?
Olha, eu não tenho resposta para sua pergunta, mas tenho um estojo com umas 30 Stabilos apenas para combinar as marcações com a cor da capa! Hahahahaha bem-vindo ao clube! 😉
Guria do céu, ler o teu texto era tudo o que eu estava precisando para finalmente criar coragem e marcar os meus xodós! Sempre tive receio, porque parece que estou destruindo-o, mas com tuas palavras, percebi que é um processo que enriquece o texto. Sempre que eu ler novamente, meus pensamentos e questionamentos estarão marcados na páginas, me levando à novas (ou quem sabe mesmas?) reflexões da primeira leitura. Muito obrigada.
Que linda, Júlia! Bem-vinda ao clube das marcadoras! ;p
Estava procurando por inspiração para começar a marcar os meus livros e me deparei com o seu texto. Que sensibilidade! A partir de agora vou começar a marcar. Se a frase marcou na minha alma por quê não marcá-la fisicamente?
Isso aí, Rafa! #TamoJunta! 😉
Tenho 15 anos e sério!!! Adorei muito ter encontrado seu texto. Me ajudou muito de diversas maneiras, tenho um kindle e toda página tem uma marcação e agora que comprei O Hobbit precisava fazer o mesmo, mas não queria “estragar” o livro físico. Seu texto foi realmente uma forma que me ajudou a entender que eu só deixaria a minha história e o modo de como enxerguei as coisas, muito obrigado mesmo.
Ei, Pedro! Fico feliz que esse texto tenha te dado “coragem” pra deixar sua marca!
Um beijo!
Amei o post. Pesquisei sobre marcar ou não livros, e agora percebi que marcar livros é perfeito para mim. Quero igual a você, quando estiver mais velha olhar todos esses livros especias pra mim, e me lembrar das partes que me tocaram.
Que bom que o post te ajudou, Lola!
E bem-vinda ao clube das marcadoras de livros! 😉
Como é bom encontrar pessoas que pensam como eu. Amei o post
Cê tá em casa! 😉
Adorei o post!! Adoro grifar e marcar os livros e seu texto me fez sentir representada kakaka Me deixou até inspirada para começar a escrever com caneta neles (eu só grifo com o marca-texto, por enquanto…)
“Nenhuma leitura é uma via de mão única. Se a pessoa que a trouxe à vida fala sozinha, não conquista absolutamente nada.” – amei esse trecho.
Que delícia encontrar alguém que faz o mesmo que eu! Pesquisei no Google: pessoas que marcam livros e olha aqui onde vim parar.. acabei de ler um livro marcando com marca texto combinando com a capa.. quis saber se isso era normal! Kkkkkkkkk marquem seus livros, a marcação eterniza o leitor!
Muito gostoso e inspirador seu texto, Lais!
Também sentia algum desconforto quando pensava em destacar algo no livro, mas com esse olhar ficou natural.
Vou fazer isso agora! Hahahahaha
Obrigada!
Eu sempre ficava horrorizado de ver minha mãe marcar os livros dela. Quando comprávamos um livro de nosso interesse, sempre pedia para ela não marcar. Mas, confesso, que quando eu lia livros antigos que ela já havia lido e marcado, achava interessante ver as anotações dela. Lendo esse artigo, mudei completamente minha maneira de pensar. Vou agora mesmo pedir desculpas para minha mãe hahaha. E, aliás, vou começar a fazer anotações, de lápis, ainda não consigo de caneta haha.
Amei!!! Sempre vejo pessoas “detonando” quem faz marcações nos livros. Mas, eu amo fazer. Amo registrar meus surtos e tenho o mesmo pensamento que você sobre um dia alguém ler e sentir através das minhas marcações as emoções que eu senti. Agora não me sinto mais sozinha hahaha. Vou continuar marcando…só vou tentar fazer uma coisinha mais bonita, tenho problemas com a estética kkk
Riscar, sublinhar livros é uma burrice. No calor da emoção acabamos por riscar o livro inteiro ( porque torna se um vício), é como tatuar o corpo: torna se um vício que pode mudar a personalidade de uma pessoa para muito pior. Se riscamos o livro inteiro nesse vício horroroso como vamos encontrar aquele trecho lindo que marcamos no meio de milhares de grifos ? Vamos perder tempo na procura e ficarmos impacientes. O que faz o aprendizado é a escrita. É escrevendo que os conceitos se imprimem em nossa memória. Além de nos ensinar a escrever ortográficamente melhor. Não rabisque seu livro, deixe-o em estado de pureza, isso é a verdadeira sabedoria
Amei o texto! Ainda tenho pavor de riscar eles, mas aprendi a escrever num post it e colar na página. Assim meus pensamentos ficam lá e qualquer coisa é só arrancar
Desde sempre marco meus livros, seja para estudar ou fazer como você: deixando minha marca, conversando com autor, evidenciando o que me marcou!! Para mim, quando não deixo minhas marcas no meu livro, não houve troca, não deixou nenhum legado, enfim, não me impressionou, nem para uma discussão (rsrsrs)!!
Bem-vinda ao clube, Marta! Hahaha sigamos marcando os livros e sendo a resistência desse movimento (que cada dia encontra ainda maissss resistência!)
Eu tenho a absurda mania de deixar as paginas dos meus livros feito a casa da Frida Khalo. É um colorido só meu. Crio critérios me tais no que grifo, conforme a cor é o nivel de importância. Ai da tem circular palavras, sublinhar com régua ou com ondinhas… não penso muito se alguém vai ler depois, raramente empresto, mas às vezes faço doações e já aviso que está tudo sublinhado.
Bem-vinda ao clube, Édila! 😉